Prefeitura de Caetité, no interior do Estado, lacra poços por apresentarem índices de radioatividade acima do limite legal
Estatal responsável pela extração do minério no local contesta laudos de órgão do governo estadual e enfrenta protesto de moradores
Sergio Lima/Folha Imagem
Protesto demoradores das comunidades próximas à usina de extração de urânio em Caetité, onde nove poços foram lacrados
MARTA SALOMON
ENVIADA ESPECIAL A CAETITÉ (BA) - Folha de São Paulo, 07/02/2010
De seu quintal, Tiago Alves dos Santos, 60, avista a única mina de urânio em atividade no país, origem da matéria-prima para o combustível das usinas nucleares de Angra dos Reis.
Ao alcance de sua vista também está o resultado de dez dias de falta d"água na região.
O papel no poço lacrado informa: "contaminação por urânio acima dos limites permitidos pelo Ministério da Saúde".
Desde a interdição do poço, a prefeitura distribui água apenas para beber e cozinhar.
"Os bezerros não podem beber, não posso molhar os pés de planta", diz Tiago, um dos cerca de 3.000 moradores da área de influência da mina de urânio.
Em três meses, nove poços próximos à unidade da estatal INB (Indústrias Nucleares do Brasil) em Caetité, sertão da Bahia, foram fechados por causa do alto índice de radioatividade, até 47 vezes o limite legal.
Os laudos que apontam contaminação por urânio são do órgão estadual Ingá (Instituto de Gestão das Águas e Clima).
Num raio de 20 km da mina, os poços começaram a ser pesquisados no final de 2008, quando um deles foi fechado.
Desde então, Caetité vive uma guerra de informação, que prejudica produtores, atemoriza parte da população de 46 mil habitantes e põe em xeque a retomada do programa nuclear brasileiro pelo governo federal.
"Tecnicamente, [os dados] estão errados", afirma Odair Gonçalves, presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear, órgão federal responsável pela fiscalização do setor.
Ele diz que amostras de água chegaram ao Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares) sem identificação de origem e podem ter sido manipuladas. "Vamos refazer a análise nos mesmos poços."
O exame periódico do nível de radiação da água é obrigação da INB. Até hoje, em dez anos de funcionamento da mina de Caetité, a estatal nuclear afirma não ter detectado resultados acima dos limites legais.
Documento da INB de 2004 admite que a água da região pode apresentar índices elevados de urânio, mas alega que seria sinal da presença natural e inofensiva do metal -e não resultado da atividade mineradora.
O instituto do governo baiano não culpa diretamente a estatal, por ora. Informa que somente no segundo semestre será possível aferir a origem do urânio encontrado na água.
Caso o urânio tenha vazado da mina, a atividade da unidade de Caetité poderá ser suspensa. De lá saem 400 toneladas por ano de concentrado de urânio, conhecido como "yellow cake".
"A água era bem clarinha; podia estar bebendo veneno sem saber", diz Raimar Alves, presidente da associação de Barreiro, um dos povoados afetados, em meio a um ato contra a contaminação, na quarta passada.
A estatal nuclear e a comissão de energia nuclear insistem em que a exposição ao urânio natural não fazem mal. "Dois anos de trabalho na mina equivalem à radiação de um raio-X dentário", afirma Hilton Mantovani, gerente da unidade.
Estudo contratado pela própria INB, porém, cita a ocorrência de tumores e malformações congênitas como doenças "que podem ser relacionadas com a exposição à radioatividade". A avaliação dos impactos da mineração na saúde da população de Caetité levará cinco anos para ser concluída.
Impressões
"Existem casos de câncer, mas não posso dizer que seja diferente de outras áreas nem que não há risco", afirma a secretária de Saúde local, Cyntia Marques. Para a superintendente de vigilância e proteção à Saúde do governo da Bahia, Lorene Louise Pinto, vale a precaução: "Pelo risco potencial, a tolerância tem de ser zero".
As neoplasias são a segunda causa de morte no país, atrás das doenças do aparelho circulatório. Nos registros de Caetité, uma a cada três mortes ocorre por "mal desconhecido".
"Tem pessoas que a gente percebe que poderiam ter câncer, mas o atestado dá causa desconhecida", diz Ademário da Silva, morador de Maniaçu, a 12 km da mina. Na quarta, ele engrossou protesto no fórum de Caetité, onde corre processo por calúnia aberto pela INB contra o padre da cidade, Osvaldino Alves Barbosa.
A estatal considerou ofensivos comentários do padre na divulgação, em 2008, de um relatório da ONG Greenpeace, o primeiro documento a falar em contaminação na região. A INB quer que o padre se retrate. Ele se recusa e cobra que a saúde da população seja monitorada.
Contaminação acirra disputa por água na zona rural de Caetité
Prefeitura do município do sertão baiano usa carros-pipa para tentar abastecer povoados onde os poços estão interditados
Na fila do abastecimento, povoado que fica ao redor da mina de urânio chegou a passar duas semanas sem água no mês passado
ENVIADA ESPECIAL A CAETITÉ (BA)
Nuvem cinza até aparece no céu de Caetité, mas a chuva é rara mesmo em época "de chuva". Após a interdição dos poços por causa do urânio, a disputa por água aumentou na região onde ela já era escassa.
Na segunda passada, chegaram à prefeitura 15 pedidos de carros-pipa. "É caro abastecer com carro-pipa, mais de R$ 6.000 por mês", afirma Nilo Joaquim de Azevedo, secretário de Recursos Hídricos.
"A gente tem de assinar papel, pôr o CPF e esperar para ganhar umas gotas d'água", diz Osvalino Chagas da Silva, que mora em frente ao poço lacrado no povoado de Maniaçu. "Se a contaminação chegar no olho d'água [outro poço local], será o fim, podemos ir embora daqui."
Na fila pelos carros-pipa, o povoado ficou duas semanas sem abastecimento em janeiro.
A estatal INB (Indústrias Nucleares do Brasil) ajuda a prefeitura na distribuição de água ao mesmo tempo que disputa água com a população.
"Em abril, tivemos dificuldade de operar a planta por falta d'água", diz Hilton Mantovani, gerente da unidade de Caetité. Ele calcula em 30 metros cúbicos a demanda diária de água na mina. Sem água, ela para.
O problema da região pode se agravar, porque a maior parte dos 50 poços existentes no entorno da mina de urânio ainda não teve os índices de radiação avaliados pelo instituto responsável pelas águas da Bahia.
"Nessa área [da mina], nem deveria ter poço artesiano, porque existe muito urânio natural", avalia o secretário.
Segundo ele, quatro caminhões-pipa funcionam o tempo todo para abastecer a cidade.
A Folha flagrou uma versão improvisada de ônibus-pipa circulando nas ruas do vilarejo de Maniaçu. Uma cacimba foi montada em cima de uma carroceria de ônibus cortada.
No centro urbano de Caetité (44% da população mora na zona rural), distante 30 km da mina de urânio, os moradores são abastecidos com água de poços livres de contaminação.
Urânio concentrado é base de programa nuclear brasileiro
DA ENVIADA ESPECIAL A CAETITÉ (BA)
No calendário da retomada do programa nuclear brasileiro, 2010 é o ano da primeira ampliação da produção de concentrado de urânio na mina de Caetité. A previsão é dobrar a produção para 800 toneladas de "yellow cake" por ano.
O produto é o resultado da aplicação de ácidos sobre o urânio em estado mineral. Depois, ele tem de ser convertido em gás para enriquecimento e uso industrial, médico ou militar.
A produção chegaria a 1.200 toneladas/ano daqui a três anos, logo após a entrada em operação da mina de Santa Quitéria, no Ceará. Os planos estão condicionados agora ao esclarecimento da contaminação dos poços. O aumento da produção depende de licenças.
A história da mina de Caetité é marcada por alguns incidentes de vazamentos. O mais recente deles, em outubro do ano passado, rendeu uma multa de R$ 1 milhão. A estatal recorre.
A mina é fundamental para os planos de completar o ciclo de enriquecimento de urânio em escala industrial. Hoje, o urânio de Caetité passa por Canadá e Holanda antes de voltar ao país e abastecer as usinas de Angra dos Reis. O programa nuclear prevê a construção de quatro novas usinas até 2030.