segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

XLV DIA MUNDIAL DA PAZ

Mensagem de paz do Papa

Neste dia 1º de janeiro, o Papa Bento XVI, dirige ao mundo uma mensagem pela Jornada Mundial da Paz. A publicação desta mensagem, no entanto, é realizada no dia da Imaculada Conceição, dia 8 de dezembro.

Leia a mensagem:

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI

PARA A CELEBRAÇÃO DO XLV DIA MUNDIAL DA PAZ

1 DE JANEIRO DE 2012



EDUCAR OS JOVENS PARA A JUSTIÇA E A PAZ


1. O INÍCIO DE UM NOVO ANO, dom de Deus à humanidade, induz-me a desejar a todos, com grande confiança e estima, de modo especial que este tempo, que se abre diante de nós, fique marcado concretamente pela justiça e a paz.

Com qual atitude devemos olhar para o novo ano? No salmo 130, encontramos uma imagem muito bela. O salmista diz que o homem de fé aguarda pelo Senhor « mais do que a sentinela pela aurora » (v. 6), aguarda por Ele com firme esperança, porque sabe que trará luz, misericórdia, salvação. Esta expectativa nasce da experiência do povo eleito, que reconhece ter sido educado por Deus a olhar o mundo na sua verdade sem se deixar abater pelas tribulações. Convido-vos a olhar o ano de 2012 com esta atitude confiante. É verdade que, no ano que termina, cresceu o sentido de frustração por causa da crise que aflige a sociedade, o mundo do trabalho e a economia; uma crise cujas raízes são primariamente culturais e antropológicas. Quase parece que um manto de escuridão teria descido sobre o nosso tempo, impedindo de ver com clareza a luz do dia.

Mas, nesta escuridão, o coração do homem não cessa de aguardar pela aurora de que fala o salmista. Esta expectativa mostra-se particularmente viva e visível nos jovens; e é por isso que o meu pensamento se volta para eles, considerando o contributo que podem e devem oferecer à sociedade. Queria, pois, revestir a Mensagem para o XLV Dia Mundial da Paz duma perspectiva educativa: « Educar os jovens para a justiça e a paz », convencido de que eles podem, com o seu entusiasmo e idealismo, oferecer uma nova esperança ao mundo.

A minha Mensagem dirige-se também aos pais, às famílias, a todas as componentes educativas, formadoras, bem como aos responsáveis nos diversos âmbitos da vida religiosa, social, política, económica, cultural e mediática. Prestar atenção ao mundo juvenil, saber escutá-lo e valorizá-lo para a construção dum futuro de justiça e de paz não é só uma oportunidade mas um dever primário de toda a sociedade.

Trata-se de comunicar aos jovens o apreço pelo valor positivo da vida, suscitando neles o desejo de consumá-la ao serviço do Bem. Esta é uma tarefa, na qual todos nós estamos, pessoalmente, comprometidos.

As preocupações manifestadas por muitos jovens nestes últimos tempos, em várias regiões do mundo, exprimem o desejo de poder olhar para o futuro com fundada esperança. Na hora actual, muitos são os aspectos que os trazem apreensivos: o desejo de receber uma formação que os prepare de maneira mais profunda para enfrentar a realidade, a dificuldade de formar uma família e encontrar um emprego estável, a capacidade efectiva de intervir no mundo da política, da cultura e da economia contribuindo para a construção duma sociedade de rosto mais humano e solidário.

É importante que estes fermentos e o idealismo que encerram encontrem a devida atenção em todas as componentes da sociedade. A Igreja olha para os jovens com esperança, tem confiança neles e encoraja-os a procurarem a verdade, a defenderem o bem comum, a possuírem perspectivas abertas sobre o mundo e olhos capazes de ver « coisas novas » (Is 42, 9; 48, 6).

Os responsáveis da educação

2. A educação é a aventura mais fascinante e difícil da vida. Educar – na sua etimologia latina educere – significa conduzir para fora de si mesmo ao encontro da realidade, rumo a uma plenitude que faz crescer a pessoa. Este processo alimenta-se do encontro de duas liberdades: a do adulto e a do jovem. Isto exige a responsabilidade do discípulo, que deve estar disponível para se deixar guiar no conhecimento da realidade, e a do educador, que deve estar disposto a dar-se a si mesmo. Mas, para isso, não bastam meros dispensadores de regras e informações; são necessárias testemunhas autênticas, ou seja, testemunhas que saibam ver mais longe do que os outros, porque a sua vida abraça espaços mais amplos. A testemunha é alguém que vive, primeiro, o caminho que propõe.

E quais são os lugares onde amadurece uma verdadeira educação para a paz e a justiça? Antes de mais nada, a família, já que os pais são os primeiros educadores. A família é célula originária da sociedade. « É na família que os filhos aprendem os valores humanos e cristãos que permitem uma convivência construtiva e pacífica. É na família que aprendem a solidariedade entre as gerações, o respeito pelas regras, o perdão e o acolhimento do outro ».[1] Esta é a primeira escola, onde se educa para a justiça e a paz.

Vivemos num mundo em que a família e até a própria vida se vêem constantemente ameaçadas e, não raro, destroçadas. Condições de trabalho frequentemente pouco compatíveis com as responsabilidades familiares, preocupações com o futuro, ritmos frenéticos de vida, emigração à procura dum adequado sustentamento se não mesmo da pura sobrevivência, acabam por tornar difícil a possibilidade de assegurar aos filhos um dos bens mais preciosos: a presença dos pais; uma presença, que permita compartilhar de forma cada vez mais profunda o caminho para se poder transmitir a experiência e as certezas adquiridas com os anos – o que só se torna viável com o tempo passado juntos. Queria aqui dizer aos pais para não desanimarem! Com o exemplo da sua vida, induzam os filhos a colocar a esperança antes de tudo em Deus, o único de quem surgem justiça e paz autênticas.

Quero dirigir-me também aos responsáveis das instituições com tarefas educativas: Velem, com grande sentido de responsabilidade, por que seja respeitada e valorizada em todas as circunstâncias a dignidade de cada pessoa. Tenham a peito que cada jovem possa descobrir a sua própria vocação, acompanhando-o para fazer frutificar os dons que o Senhor lhe concedeu. Assegurem às famílias que os seus filhos não terão um caminho formativo em contraste com a sua consciência e os seus princípios religiosos.

Possa cada ambiente educativo ser lugar de abertura ao transcendente e aos outros; lugar de diálogo, coesão e escuta, onde o jovem se sinta valorizado nas suas capacidades e riquezas interiores e aprenda a apreciar os irmãos. Possa ensinar a saborear a alegria que deriva de viver dia após dia a caridade e a compaixão para com o próximo e de participar activamente na construção duma sociedade mais humana e fraterna.

Dirijo-me, depois, aos responsáveis políticos, pedindo-lhes que ajudem concretamente as famílias e as instituições educativas a exercerem o seu direito-dever de educar. Não deve jamais faltar um adequado apoio à maternidade e à paternidade. Actuem de modo que a ninguém seja negado o acesso à instrução e que as famílias possam escolher livremente as estruturas educativas consideradas mais idóneas para o bem dos seus filhos. Esforcem-se por favorecer a reunificação das famílias que estão separadas devido à necessidade de encontrar meios de subsistência. Proporcionem aos jovens uma imagem transparente da política, como verdadeiro serviço para o bem de todos.

Não posso deixar de fazer apelo ainda ao mundo dos media para que prestem a sua contribuição educativa. Na sociedade actual, os meios de comunicação de massa têm uma função particular: não só informam, mas também formam o espírito dos seus destinatários e, consequentemente, podem concorrer notavelmente para a educação dos jovens. É importante ter presente a ligação estreitíssima que existe entre educação e comunicação: de facto, a educação realiza-se por meio da comunicação, que influi positiva ou negativamente na formação da pessoa.

Também os jovens devem ter a coragem de começar, eles mesmos, a viver aquilo que pedem a quantos os rodeiam. Que tenham a força de fazer um uso bom e consciente da liberdade, pois cabe-lhes em tudo isto uma grande responsabilidade: são responsáveis pela sua própria educação e formação para a justiça e a paz.

Educar para a verdade e a liberdade

3. Santo Agostinho perguntava-se: « Quid enim fortius desiderat anima quam veritatem – que deseja o homem mais intensamente do que a verdade? ».[2] O rosto humano duma sociedade depende muito da contribuição da educação para manter viva esta questão inevitável. De facto, a educação diz respeito à formação integral da pessoa, incluindo a dimensão moral e espiritual do seu ser, tendo em vista o seu fim último e o bem da sociedade a que pertence. Por isso, a fim de educar para a verdade, é preciso antes de mais nada saber que é a pessoa humana, conhecer a sua natureza. Olhando a realidade que o rodeava, o salmista pôs-se a pensar: « Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que Vós criastes: que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para com ele Vos preocupardes? » (Sal 8, 4-5). Esta é a pergunta fundamental que nos devemos colocar: Que é o homem? O homem é um ser que traz no coração uma sede de infinito, uma sede de verdade – não uma verdade parcial, mas capaz de explicar o sentido da vida –, porque foi criado à imagem e semelhança de Deus. Assim, o facto de reconhecer com gratidão a vida como dom inestimável leva a descobrir a dignidade profunda e a inviolabilidade própria de cada pessoa. Por isso, a primeira educação consiste em aprender a reconhecer no homem a imagem do Criador e, consequentemente, a ter um profundo respeito por cada ser humano e ajudar os outros a realizarem uma vida conforme a esta sublime dignidade. É preciso não esquecer jamais que « o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões »,[3] incluindo a transcendente, e que não se pode sacrificar a pessoa para alcançar um bem particular, seja ele económico ou social, individual ou colectivo.

Só na relação com Deus é que o homem compreende o significado da sua liberdade, sendo tarefa da educação formar para a liberdade autêntica. Esta não é a ausência de vínculos, nem o império do livre arbítrio; não é o absolutismo do eu. Quando o homem se crê um ser absoluto, que não depende de nada nem de ninguém e pode fazer tudo o que lhe apetece, acaba por contradizer a verdade do seu ser e perder a sua liberdade. De facto, o homem é precisamente o contrário: um ser relacional, que vive em relação com os outros e sobretudo com Deus. A liberdade autêntica não pode jamais ser alcançada, afastando-se d’Ele.

A liberdade é um valor precioso, mas delicado: pode ser mal entendida e usada mal. « Hoje um obstáculo particularmente insidioso à acção educativa é constituído pela presença maciça, na nossa sociedade e cultura, daquele relativismo que, nada reconhecendo como definitivo, deixa como última medida somente o próprio eu com os seus desejos e, sob a aparência da liberdade, torna-se para cada pessoa uma prisão, porque separa uns dos outros, reduzindo cada um a permanecer fechado dentro do próprio “eu”. Dentro de um horizonte relativista como este, não é possível, portanto, uma verdadeira educação: sem a luz da verdade, mais cedo ou mais tarde cada pessoa está, de facto, condenada a duvidar da bondade da sua própria vida e das relações que a constituem, da validez do seu compromisso para construir com os outros algo em comum ».[4]

Por conseguinte o homem, para exercer a sua liberdade, deve superar o horizonte relativista e conhecer a verdade sobre si próprio e a verdade acerca do que é bem e do que é mal. No íntimo da consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz o chama a amar e fazer o bem e a fugir do mal, a assumir a responsabilidade do bem cumprido e do mal praticado.[5] Por isso o exercício da liberdade está intimamente ligado com a lei moral natural, que tem carácter universal, exprime a dignidade de cada pessoa, coloca a base dos seus direitos e deveres fundamentais e, consequentemente, da convivência justa e pacífica entre as pessoas.

Assim o recto uso da liberdade é um ponto central na promoção da justiça e da paz, que exigem a cada um o respeito por si próprio e pelo outro, mesmo possuindo um modo de ser e viver distante do meu. Desta atitude derivam os elementos sem os quais paz e justiça permanecem palavras desprovidas de conteúdo: a confiança recíproca, a capacidade de encetar um diálogo construtivo, a possibilidade do perdão, que muitas vezes se quereria obter mas sente-se dificuldade em conceder, a caridade mútua, a compaixão para com os mais frágeis, e também a prontidão ao sacrifício.

Educar para a justiça

4. No nosso mundo, onde o valor da pessoa, da sua dignidade e dos seus direitos, não obstante as proclamações de intentos, está seriamente ameaçado pela tendência generalizada de recorrer exclusivamente aos critérios da utilidade, do lucro e do ter, é importante não separar das suas raízes transcendentes o conceito de justiça. De facto, a justiça não é uma simples convenção humana, pois o que é justo determina-se originariamente não pela lei positiva, mas pela identidade profunda do ser humano. É a visão integral do homem que impede de cair numa concepção contratualista da justiça e permite abrir também para ela o horizonte da solidariedade e do amor.[6]

Não podemos ignorar que certas correntes da cultura moderna, apoiadas em princípios económicos racionalistas e individualistas, alienaram das suas raízes transcendentes o conceito de justiça, separando-o da caridade e da solidariedade. Ora « a “cidade do homem” não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo ».[7]

« Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados » (Mt 5, 6). Serão saciados, porque têm fome e sede de relações justas com Deus, consigo mesmo, com os seus irmãos e irmãs, com a criação inteira.

Educar para a paz

5. « A paz não é só ausência de guerra, nem se limita a assegurar o equilíbrio das forças adversas. A paz não é possível na terra sem a salvaguarda dos bens das pessoas, a livre comunicação entre os seres humanos, o respeito pela dignidade das pessoas e dos povos e a prática assídua da fraternidade ».[8] A paz é fruto da justiça e efeito da caridade. É, antes de mais nada, dom de Deus. Nós, os cristãos, acreditamos que a nossa verdadeira paz é Cristo: n’Ele, na sua Cruz, Deus reconciliou consigo o mundo e destruiu as barreiras que nos separavam uns dos outros (cf. Ef 2, 14-18); n’Ele, há uma única família reconciliada no amor.

A paz, porém, não é apenas dom a ser recebido, mas obra a ser construída. Para sermos verdadeiramente artífices de paz, devemos educar-nos para a compaixão, a solidariedade, a colaboração, a fraternidade, ser activos dentro da comunidade e solícitos em despertar as consciências para as questões nacionais e internacionais e para a importância de procurar adequadas modalidades de redistribuição da riqueza, de promoção do crescimento, de cooperação para o desenvolvimento e de resolução dos conflitos. « Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus » – diz Jesus no sermão da montanha (Mt 5, 9).

A paz para todos nasce da justiça de cada um, e ninguém pode subtrair-se a este compromisso essencial de promover a justiça segundo as respectivas competências e responsabilidades. De forma particular convido os jovens, que conservam viva a tensão pelos ideais, a procurarem com paciência e tenacidade a justiça e a paz e a cultivarem o gosto pelo que é justo e verdadeiro, mesmo quando isso lhes possa exigir sacrifícios e obrigue a caminhar contracorrente.

Levantar os olhos para Deus

6. Perante o árduo desafio de percorrer os caminhos da justiça e da paz, podemos ser tentados a interrogar-nos como o salmista: « Levanto os olhos para os montes, de onde me virá o auxílio? » (Sal 121, 1).

A todos, particularmente aos jovens, quero bradar: « Não são as ideologias que salvam o mundo, mas unicamente o voltar-se para o Deus vivo, que é o nosso criador, o garante da nossa liberdade, o garante do que é deveras bom e verdadeiro (…), o voltar-se sem reservas para Deus, que é a medida do que é justo e, ao mesmo tempo, é o amor eterno. E que mais nos poderia salvar senão o amor? ».[9] O amor rejubila com a verdade, é a força que torna capaz de comprometer-se pela verdade, pela justiça, pela paz, porque tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (cf. 1 Cor 13, 1-13).

Queridos jovens, vós sois um dom precioso para a sociedade. Diante das dificuldades, não vos deixeis invadir pelo desânimo nem vos abandoneis a falsas soluções, que frequentemente se apresentam como o caminho mais fácil para superar os problemas. Não tenhais medo de vos empenhar, de enfrentar a fadiga e o sacrifício, de optar por caminhos que requerem fidelidade e constância, humildade e dedicação.

Vivei com confiança a vossa juventude e os anseios profundos que sentis de felicidade, verdade, beleza e amor verdadeiro. Vivei intensamente esta fase da vida, tão rica e cheia de entusiasmo.

Sabei que vós mesmos servis de exemplo e estímulo para os adultos, e tanto mais o sereis quanto mais vos esforçardes por superar as injustiças e a corrupção, quanto mais desejardes um futuro melhor e vos comprometerdes a construí-lo. Cientes das vossas potencialidades, nunca vos fecheis em vós próprios, mas trabalhai por um futuro mais luminoso para todos. Nunca vos sintais sozinhos! A Igreja confia em vós, acompanha-vos, encoraja-vos e deseja oferecer-vos o que tem de mais precioso: a possibilidade de levantar os olhos para Deus, de encontrar Jesus Cristo – Ele que é a justiça e a paz.

Oh vós todos, homens e mulheres, que tendes a peito a causa da paz! Esta não é um bem já alcançado mas uma meta, à qual todos e cada um deve aspirar. Olhemos, pois, o futuro com maior esperança, encorajemo-nos mutuamente ao longo do nosso caminho, trabalhemos para dar ao nosso mundo um rosto mais humano e fraterno e sintamo-nos unidos na responsabilidade que temos para com as jovens gerações, presentes e futuras, nomeadamente quanto à sua educação para se tornarem pacíficas e pacificadoras! Apoiado em tal certeza, envio-vos estas refl exões que se fazem apelo: Unamos as nossas forças espirituais, morais e materiais, a fim de « educar os jovens para a justiça e a paz ».

Vaticano, 8 de Dezembro de 2011.



BENEDICTUS PP XVI

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Carta da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa

08 de novembro de 2011


Prezados Senhores(as) Deputados(as) Federais e Senadores(as) da República,


Vimos por meio desta carta, apresentar-lhes a posição da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa a respeito do processo de organização dos Mega-Eventos no Brasil e da legislação que vem sendo construída em torno deste processo.

Os Comitês Populares são organizações da sociedade civil, compostos por movimentos, ONGs, associações e pessoas preocupadas com o “legado social” que vem sendo construído em nome dos Mega-Eventos e que atuam no sentido de garantir os Direitos Humanos, nos seus mais distintos aspectos, das diversas populações atingidas pelos impactos destes eventos. Estamos articulados nas 12 cidades sedes, organizando atividades as mais distintas possíveis, visando sempre à conscientização política e a luta e resistência por direitos.

Em especial, temos acompanhado o processo de constituição legal do que chamamos “Estado de Exceção”, que versa sobre um conjunto de regras extraordinárias, muitas das quais ferindo nossa Constituição, a vigorar neste período. Tal embasamento jurídico vem sendo construído tanto a nível federal, quanto nos entes sub-federais. Todavia, para economia de espaço, vamos nos concentrar na legislação pertinente a vosso trabalho. Mas, desde já, estamos abertos a dialogar sobre cada processo estadual e municipal.

No âmbito federal, sabemos que Vossas Senhorias estão debatendo a Lei Geral da Copa. Todavia, também sabemos que ela não é a primeira legislação de exceção imposta em nome dos Mega-Eventos. Nos assusta a aprovação de legislações, sempre oriundas de Medidas Provisórias, que dão tamanha prioridade aos Jogos. E aqui, colocamos quatro pontos basilares a respeito de nosso entendimento sobre os Mega-Eventos (Copa do Mundo, Olimpíadas e Copa das Confederações):

a) Ao abordarmos o sentido de urgência e relevância dos jogos, temos sempre que contrapor a outras demandas relevantes e urgências no País. Já é de praxe determos mais recursos para saúde e educação que, de longe, são mais relevantes para o país do que a organização de alguns jogos. Porém, gostaríamos de lembrar outra situação: a das enchentes que assolam e derrubam moradias populares a cada início de ano (e agora começando a ficar recorrente também em outras épocas). Por que, para reverter este processo, não se cria uma legislação de urgência? Por que famílias despejadas no início do ano ainda não contam com um rito mais rápido de licitação?Por que, infelizmente, temos a certeza de que isto ocorrerá de novo em 2012?;

b) Nunca podemos esquecer que a FIFA, a CBF, o LOC, e o COI, que hoje dialogam com Vossas Senhorias, são empresas privadas. Por mais relevante que seja a organização dos Jogos Olímpicos e Mundiais, não faz sentido uma legislação que garanta privilégios a um particular, ainda mais estrangeiro, em caráter jamais visto no país, subjugando inclusive o Estado. Isenção de impostos, rito especial para patentes, poder de autorizar a entrada de estrangeiros, criação de tipos penais especiais, cláusulas de ressarcimento, dentre outros;

c) Somos defensores de políticas públicas e leis especiais que fortaleçam a cidadania, reduzam a desigualdade social do país e concretize direitos humanos (sociais, econômicos e políticos) no país. O avanço ou retrocesso neste conjunto de fatores pode ser chamado de Legado de um determinado processo. No caso dos Mega-Eventos, parece-nos, infelizmente, fadado a trazer um legado de endividamento público (o custo dos jogos já ultrapassou os R$ 100 bilhões), especulação imobiliária, segregação social (mais de 100 mil famílias despejadas) e retirada de direitos sob distintas formas . É dever do Congresso Nacional mensurar este Legado antes de dar seqüência ao processo de legislação especial; e

d) Defendemos a soberania brasileira. Não aceitaremos nunca a chantagem que é feita com o país como se fosse um favor da Fifa e do COI a organização dos jogos no Brasil. Não precisamos lembrar a nossos(as) congressistas que o País, além de soberano, é também penta-campeão no futebol e tem o direito de receber o Mundial e organizá-lo conforme as leis e prioridades nacionais. Se não for assim, a FIFA que procure outro país que aceite tamanha ingerência e a transformação de um evento esportivo num balcão de negócios privados.

Antes de adentrarmos nos aspectos relacionados à Lei Geral, e deixando de lado ainda outras legislações como a criação da Autoridade Pública Olímpica, gostaríamos de nos concentrar nas leis que versam sobre os aspectos financeiros e orçamentários dos jogos:

Lei 12.350 de 20 de dezembro de 2010, (conversão da MP 497) – Dispõe sobre as medidas tributárias: são várias as perguntas que surgem ao lermos esta Lei. Mas a pergunta mais básica é: por que uma determinada atividade artística-esportiva merece tamanha carga de isenção fiscal? Qual o embasamento que garante isto?

Tal lei, ao aprovado por esta casa, constituiu-se no primeiro passo para a construção de uma situação extremamente peculiar: parece-nos que, para a organização dos jogos, se constitui territórios separados do território nacional onde valerão regras especiais: a Lei geral de isenção fiscal e até próprio de licitação.

Lei 12.462 de 5 de agosto de 2011, (conversão da MP 527) – Institui o Regime Diferenciado de Contratações, ou RDC. Após a garantia da isenção fiscal, sob a desculpa da urgência (novamente, quão urgente são diversas obras neste país), foi instituído o RDC, um verdadeiro atalho à Lei de Licitações. Não por acaso, essa brecha foi aberta com a picareta de uma Medida Provisória, a MPV nº 527, de 2011. Aliás, uma não, mas várias, pois, na realidade, foram necessárias quatro tentativas do governo e sua bancada congressual até a aprovação definitiva da lei. O que mostra que este Congresso não estava seguro do processo.

Nós também não temos nenhuma segurança quanto ao RDC. A não existência do projeto básico permite que com o dinheiro público se construa diversos elefantes brancos superfaturados. A Matriz de responsabilidade, ao qual o RDC está vinculado, nunca foi submetida à avaliação popular para uma discussão concreta sobre mobilidade ou prioridades orçamentárias. A pouca ou nenhuma possibilidade de contestação judicial é uma afronta aos princípios constitucionais.

Acreditamos que estas, e outras leis constituídas (inclusive as aprovadas no âmbito sub-federal) sob a égide dos Jogos ainda podem ser questionadas. Seus efeitos em termos de ônus aos cofres públicos e a retiradas de direitos são visíveis. Porém, mais do que nunca, dirigimo-nos a vós, congressistas deste país, querendo ter o direito de ser ouvido sobre a Lei Geral da Copa, tamanha a afronta que esta lei causa aos princípios basilares que apontamos acima. Assim, com o respeito de Vossas Senhorias, mas dentro de nossos direitos constitucionais, abordamos os seguintes aspectos sobre a Lei Geral da Copa que necessitam de uma imprescindível e cuidadosa avaliação:

1. Proteção da propriedade industrial

Trata-se da criação de um “regime especial” de procedimentos para pedidos de registro de marcas, emblemas e demais “símbolos oficiais” da FIFA junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), para fins de proteção de propriedade industrial. Primeiro, não há qualquer restrição ou definição sobre o significado do termo “símbolos oficiais”, que pode abranger, efetivamente, qualquer imagem, idéia e mesmo expressões lingüísticas. Mais de mil itens já foram objeto de requisição de registro pela entidade, entre eles os nomes das cidades-sede e até o numeral “2014”. De fato, estamos diante de um processo de privatização da cultura através da constituição de direitos de uso exclusivistas. Para piorar a situação, o art. 5º, §1º, I do projeto de lei prevê que “o INPI não requererá à FIFA a comprovação da condição de alto renome de suas marcas ou da caracterização de suas marcas como notoriamente conhecidas”. Ou seja, retira a competência do órgão técnico em nome de uma entidade privada, transformando-lhe tão somente num agente burocrático (e ainda deverá fazê-lo na frente de outros processos) e deixando, na prática, a cargo da arbitrariedade da FIFA a escolha do menu de bens imateriais que monopolizará.

Nem as mais poderosas corporações transnacionais, que vêem nas patentes fontes de lucros milionários, conseguiram tamanho benefício. Mas, muito mais grave que isto (até porque não concordamos com benefícios a transnacionais), esta regra está censurando a imensa criatividade artística e paixão do brasileiro com a Copa do Mundo. Todas as imagens e frases de efeitos, que criam o sentimento coletivo de paixão nacional, agora, correm o risco de terem que pagar “direito autoral” à FIFA.

2. Direitos de imagem, som e radiodifusão

Na mesma tônica segue o capítulo sobre captação de imagem, som e retransmissão dos jogos e eventos paralelos. Aqui, a FIFA é considerada “titular exclusiva” de todos os direitos a eles relacionados, podendo impedir a presença da imprensa – como já ocorreu durante o sorteio das eliminatórias, em julho – e podendo selecionar os “flagrantes de imagem” de tempo limitado que disponibilizará para uso não-comercial em noticiários e congêneres.

3. Áreas de restrição comercial

Outra decorrência importante da Lei Geral da Copa diz respeito às restrições e condicionantes impostas ao direito de ir e vir e à livre-iniciativa. De acordo com o art. 11 do projeto, seria concedida “à FIFA e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua” em locais como imediações de estádios e suas vias de acesso. Essa disposição implica numa proibição de venda ou exposição de quaisquer mercadorias dentro desses perímetros que não obtenham permissão expressa da entidade, impactando fortemente o comércio local e os trabalhadores ambulantes. Mais que isto, ao restringir direitos comerciais legítimos e, muitas das vezes (como estamos vendo em algumas cidades), provocar remoções e realocações, fere o direito de propriedade e abre brecha para acordos e interesses obscuros na futura reocupação das áreas.

Ademais, mas não menos importante, sugere a possibilidade de demarcação de territórios de interdição, com a instalação das chamadas Zonas de Exclusão, podendo inviabilizar ou dificultar, inclusive, o funcionamento de equipamentos públicos essenciais próximos, como escolas e hospitais.

4. Venda e preço de ingressos

Ignorando direitos do consumidor consubstanciados em diversas leis, a proposta de lei oferece à FIFA amplos poderes para determinar tanto o preço quanto as regras de compra e venda, alteração e cancelamento de ingressos. Tais critérios poderão ser estabelecidos unilateralmente e sem aviso prévio pela entidade, nos termos do art. 33, incluindo-se a supressão do direito de arrependimento e a permissão da prática comercial abusiva da venda casada.

Não bastasse isso, a pressão do organismo avança sobre assuntos ainda não constantes da proposta entregue ao Congresso. A intenção declarada da FIFA é suspender também parte do Estatuto do Torcedor, do Estatuto do Idoso e do Código de Defesa do Consumidor, para anular o direito de meia-entrada para estudantes e idosos. Os brasileiros, ao que tudo indica, não estão convidados para a festa na sua própria casa.

5. Tipos penais, sanções civis e juízos especiais

Especialmente alarmante, no projeto, é a confecção de três tipos penais específicos, os crimes de “Utilização Indevida de Símbolos Oficiais”, “Marketing de Emboscada por Associação” e “Marketing de Emboscada por Intrusão”, de natureza pontual e temporária. Acompanhando as penas de detenção e multa, um conjunto de sanções civis relacionadas à venda de produtos, uso de ingressos e atividades de publicidade. Medidas como essas desconsideram todas as críticas à tendência de hipernalização já acentuada na política criminal brasileira e à punição seletiva do sistema penal. São os pobres que continuam sendo, afinal, seus “clientes preferenciais”.

Colocando um exemplo bem claro aqui: se um determinado restaurante anuncia: “venha assistir aqui os jogos da Copa do Mundo de 2014”, etc, etc. Este estabelecimento poderá sofrer duas sanções: a primeira é ser obrigado a pagar direitos autorais por usar um símbolo oficial da Copa e a segunda, de acordo com o Artigo 18 ser detido de três meses a um ano de prisão por cometer um crime de “alcançar vantagem econômica ou publicitária por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou símbolos oficiais”

Fechando o circuito de criminalização da espontaneidade, o art. 37, timidamente inserido nas Disposições Finais do projeto, permite criar juizados especiais, varas, turmas e câmaras especializadas para causas relativas aos eventos. A disposição, neste caso, é flagrantemente inconstitucional e pretende instituir uma justiça paralela dentro do sistema vigente, na esteira do modelo sul-africano, que inovou com a implantação de 56 Tribunais Especiais da Copa. A legislação aplicada por estes tribunais de exceção também mostrou-se absolutamente desproporcional: condenações de 15 anos por furto de uma câmera fotográfica e distinções entre turistas brancos e negros fizeram parte da lista de absurdos da edição de 2010. No Brasil, ministros do STF, como Marco Aurélio Mello, já se manifestaram desfavoráveis à proposta. Resta saber se seguiremos ou não o rastro de repressão da Jabulani.

6. Vistos de entrada e permissões de trabalho

A ideologia da soberania, que em alguns momentos tanto atormenta o Estado brasileiro, não parece causar celeuma diante de pressões externas. Para a Copa do Mundo de 2014, a combinação é no mínimo inusitada: proibições de acesso para cidadãos brasileiros e liberação sumária do ingresso para membros, funcionários, parceiros, convidados, delegados ou clientes da FIFA. Segundo consta no projeto de Lei Geral, seria suficiente a credencial para afastar qualquer discricionariedade na concessão de vistos de entrada em território nacional, assemelhando o país a uma gigantesca arquibancada. A síntese é a seguinte: instalação de fronteiras internas no espaço de nossas cidades e dissolução das fronteiras externas sob o ditame de organismos internacionais. Basta comprar seu ingresso.

7. Responsabilidade da União

Por fim, como todo empreendimento necessita de garantias, a FIFA soube escolher bem as suas: ninguém menos que a própria União deve assumir a responsabilidade por danos e prejuízos causados à entidade. Pela forma como se encontra redigido o art. 30 do projeto de lei, não se trata apenas de responsabilidade civil pessoal. Ao contrário, a União responderá amplamente por “todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos”.

Nada poderia ser mais genérico e, em última instância, quase toda eventualidade se enquadraria nessa formulação, aumentando substancialmente a conta da Copa do Mundo em reparações e indenizações com verbas públicas. A situação é kafkiana. O Estado brasileiro, tornou-se, de repente, não mais que de repente, o fiador da FIFA em seus negócios particulares. Sabemos que no passado, este Congresso Nacional já vetou acordos de investimento com a Cláusula chamada Investidor-Estado, que permitia uma empresa acionar o Estado por fazer política que contrariasse seus interesses. Esta Lei, encontra-se na mesma esfera e contamos com o mesmo bom senso do Congresso para barrar este processo.

Conclusão e sugestões:

O conjunto de leis de exceção que vem sendo criadas para os Mega-Eventos, ao fim e ao cabo, criam uma figura muito específica. Os jogos não ocorrerão no Brasil. O Brasil gentilmente cederá uma parte de seu território para a realização dos jogos. Gentilmente porque os investimentos e gastos públicos relacionados já ultrapassam os R$ 100 bilhões, dinheiro que resolveria boa parte de nossas mazelas sociais.

Estes territórios especiais serão demarcados pela própria FIFA, doravante chamada de Rei, tendo a CBF como Rainha e o COI como príncipe herdeiro. Nestes territórios é a família real quem determina as Regras (“nomes oficiais”, quem pode comercializar ou exercer outras atividades, como a da imprensa e de prestação de serviços, ritos penais) e quem possui total isenção fiscal. Para a construção destes territórios, um rito especial de licitação.

Esta mesma família Real também é responsável por determinar a gestão dass fronteiras. Além de decidir geograficamente a área de seu interesse, ela determina quem pode entrar e sair, quem pode comercializar, quem e como pode transmitir (ou seja, não existe liberdade de imprensa no Reinado). Brasileiros(as), ainda mais pobres, não serão bem vindos(as). Aqueles(as) que inclusive estão perto do novo reinado, serão despejados, desalojados e impedidos de realizar suas atividades.

Mas, e os demais papéis?

O Estado brasileiro? Bom, o papel deste é servir de polícia deste novo Rei e também de caixa do tesouro, pois é o responsável último por arcar com os gastos que antecedem e com os possíveis prejuízos futuros do negócio real.

O povo brasileiro? No entender da FIFA, a este cabe apenas o papel de Bobo da Corte. E, como dissemos, os pobres e os que moram e trabalham próximo... bem, estes que caiam fora.

Ao Legislativo Federal? Junto com a pressão nas ruas, é quem tem o poder para acabar com esta submissão e total inversão de valores. O conto de fadas da FIFA ainda não se tornou realidade, mas temos poucas chances de reverter. Para isto, o Legislativo precisa cumprir seu papel. Os Comitês Populares estão a disposição para construir este processo.

Quais as sugestões que oferecemos aos senhores(as):

a) A FIFA está nas mãos do Brasil. Não há mais tempo hábil para mudar os jogos. Logo, ela tem que acatar nossas regras, e não nós as delas. Assim, nossa primeira proposta é que o Congresso vete a Lei Geral da Copa.

b) Se os(as) senhores(as) estão desconfortáveis com este processo, afinal irão chantegeá-los dizendo que já foi um compromisso assumido, relembramos que o compromisso de defesa da Constituição e dos interesses do povo está acima do compromisso com um ente privado externo. Desta forma, para comprovar e auferir o interesse do povo, sugerimos a realização de audiências públicas nas 12 cidades sede e em especial com as populações envolvidas. Estamos dispostos a contribuir com os(as) senhores(as) para organizá-las. Não existe sentido de urgência para aprovar tamanha afronta.

c) Mas sabemos que não são só as populações das 12 cidades sedes que sofrem com os legados nada sociais da Copa. Assim, nos parece como medida bastante interessante a aprovação de um plebiscito oficial, para consultar todo o povo brasileiro sobre a Lei Geral da Copa e outras medidas equivalentes. Neste caso, ao contrário do que ocorreu recentemente na Grécia e Europa, onde o povo foi suprimido de seus direitos, o Congresso Federal dará uma das maiores lições de democracia e participação popular.

Assinam esta carta, os Comitês Populares da Copa nas 12 cidades sede.


Contatos para maiores informações:

Sandra Quintela - Comitê Popular Rio de Janeiro: 21 8842-6472
Thiago Hoshino - Comitê Popular Curitiba: 41 9912-9300
Vitor Lima Guimarães - Comitê Popular de Brasília: 61 9946-5966

terça-feira, 4 de outubro de 2011

NOTA PÚBLICA CONTRA AS MENTIRAS DA GLOBO

NOTA PÚBLICA

 
PEDIDO DE CORREÇÃO DE INFORMAÇÕES
 
Porto Seguro, 26 de Setembro de 2011.
 
PARA O JORNAL NACIONAL – JN NO AR
REDE GLOBO DE TELEVISÃO
 
A Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia - FINPAT, no uso das suas atribuições contidas em seu Estatuto na defesa dos Direitos e Interesses das populações indígenas da sua representação, neste ato representada por seus Caciques e lideranças abaixo relacionados, vêm por meio desta Nota Pública, solicitar a Rede Globo de Televisão a correção de informações da reportagem do JN no AR, datada de 20/09/2011, onde em visita a Aldeia Pataxó Barra Velha, apresentou dados irreais de população e quantidade de Aldeias Pataxó, pertencentes ao Território Barra Velha, localizado no município de Porto Seguro/BA. Assim como, a quantidade e distinção de áreas que poderão ser utilizadas na agricultura e meios de sobrevivência da população Pataxó, beneficiada pela revisão de limites do Território Indígena Barra Velha (T.I.B.V). Sabemos que o contexto da comunicação e informação é transmitir a verdade e ter imparcialidade nos fatos, coisa que o JN no AR não fez deu mais tempo e foco na matéria aos fazendeiros e latifundiários que as comunidades indígenas. E divulgou no programa apenas uma minúscula parte da entrevista com as lideranças, colocando assim, toda a sociedade contra os índios, fatos estes prejudiciais à revisão de limites do Território Barra Velha. 
 
Sendo assim, viemos informar que, são 16 (dezesseis) aldeias com população aproximadamente de 6.000 mil índios, integrantes a este Território, são elas: Barra Velha, Pará, Bujigão, Xandó, Campo do Boi, Meio da Mata, Boca da Mata, Cassiana, Pé do Monte, Trevo do Parque, Jitair, Guaxuma, Aldeia Nova, Corumbalzinho, Craveiro e Aldeia Águas Belas. A área atual é de 8.627 hectares , a revisão será para 52.000 mil hectares, sendo que destas 14.000 mil hec. são áreas pertencentes ao Parque Nacional do Monte Pascoal, importante fragmento de Mata Atlântica da Costa do Descobrimento e Marco Histórico do Brasil, mais de 6.000 mil hec. são áreas de restingas, campos, mangues, lagos e preservação permanente, não apropriadas para a prática e desenvolvimento da agricultura indígena. A maioria das terras produtivas está nas mãos de grandes fazendeiros, criadores de gado e latifundiários, sobrando aos índios apenas areia e pequenos quintais. 
 
Nós caciques e lideranças Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia, estamos em busca da garantia dos direitos tradicionais do T.I.B.V, em marcha viajamos 03 (três) vezes por ano à Brasília, para discutirmos este assunto e solicitar providências junto a FUNAI, INCRA, ICMBio, Secretaria Nacional de Articulação Social da Presidência da República, 6ª. Câmara do Ministério Público Federal, AGU, Câmara dos Deputados e Senado Federal, a fim de uma solução pacífica na regularização fundiária do Território Barra Velha e outros da região. Durante o ano de 2010, sensibilizamos o então Presidente da República, o Srº. Luiz Inácio Lula da Silva da importância da revisão de limites da T.I.B.V. para a sobrevivência e vida digna das famílias de indígenas da etnia Pataxó. A decisão política se deu em Fevereiro de 2011, na união da FUNAI, INCRA e ICMBio, na emissão de notas técnicas dando de acordo a revisão de limites da área conforme relatório antropológico da FUNAI, já publicado no Diário Oficial do Estado e União. A proposta e acordo das partes, será na forma de um mosaico de Terras Públicas, áreas de interesse ambiental, social e econômico, dividida em Terra Indígena , Parque Nacional, áreas de preservação permanente e Assentamento do INCRA. O Parque Nacional do Monte Pascoal continuará sendo parque pertencente à Terra Indígena, onde será formado um Conselho Gestor, entre FUNAI, ICMBio e Comunidades Indígenas para sua gestão e preservação. 
 
O Território Indígena Barra Velha, é área indígena, pertencente ao Povo Pataxó da passada, presente e futuras gerações, onde nossos ancestrais foram encontrados. Os latifundiários que hoje nos massacram, tomaram as nossas terras no passado, são descendentes daqueles que dizimaram milhões de índios no Brasil, desde o “Descobrimento” em 1.500. E ainda persistem em desrespeitar os direitos humanos, Terra, Educação, Saúde e vida digna a todos, sem discriminação de côr, raça ou credo. Muitas vezes os meios de comunicação e mídia em geral aproveitam a inocência do índio, principalmente por não saber se expressar, destrocem e deturpam a mensagem passada pelo índio, usando apenas aquilo lhes interessam, passando para a sociedade Brasileira algo totalmente fora da realidade, fazendo campanha contra a Demarcação de Terra Indígena no Brasil. 
 
Portanto, a nossa solicitação é pertinente para esclarecer os fatos, pedimos que seja feita, a correção das informações que foi destorcida e não condiz com a realidade, reparar os danos as comunidades indígenas e dar tempo compatível aos índios dado aos contrários. A fim de não decorrer para degredir a imagem do índio, como preguiçoso e prejudicial à economia e desenvolvimento do país. 
 
 Na certeza de podermos contar com a compreensão de todos, desde já agradecemos. 
 
Atenciosamente,
  
Gerdion Santos do Nascimento – Aruã Pataxó
Cacique da Aldeia Pataxó Coroa Vermelha e Presidente da FINPAT
RG: 07749574 84
Contato; (73) 9984-8272

 
Caciques e Lideranças
 
 1.    Romildo Alves Ferreira dos Santos – Cacique da Aldeia Pataxó Barra Velha
RG: 07365548-15
 2.    Alfredo Santana Ferreira – Cacique da Aldeia Pataxó Boca da Mata
RG: 09562695 67
 3.    Oziel Santana Ferreira – Cacique da Aldeia Pataxó Pé do Monte
RG: 09563064 38
 4.    Lídio Pereira dos Santos – Liderança da Aldeia Pataxó Kay
RG: 1.401.062
5.    Adilson Santana – Cacique da Aldeia Pataxó Trevo do Parque
 6.    Jurandy Ferreira de Souza – Cacique da Aldeia Pataxó Jitair
 7.    Manoel Ressurreição Braz – Cacique da Aldeia Pataxó Guaxuma
RG: 07749529-20
 8.    Jovino Braz Machado – Cacique da Aldeia Pataxó Aldeia Nova
RG: 12005415 96
9.     Adailton Pereira Braz – Cacique da Aldeia Pataxó Corumbalzinho
 10. Adroaldo da Conceição Braz – Cacique da Aldeia Pataxó Águas Belas
 11. Ajinaldo Torinho Neves – Cacique da Aldeia Pataxó Tauá
RG: 07985275-01
 12. Adenilson Pereira da Conceição – Liderança da Aldeia Monte Dourado
RG: 08208673 73
 13. José Conceição Ferreira – Cacique da Aldeia Tibá
RG: 1.092.905
 14. Marcos Lima Pinheiro – Cacique da Aldeia Pataxó Piqui
RG: 07355027 20
 15. José Francisco Neves Azevedo – Cacique da Aldeia Pataxó Kay
RG: 02204741 76
 16. José Alves de Almeida – Cacique da Aldeia Craveiro
RG: 5.738.130
 17. Maria das Dores Florêncio de Jesus – Presidente do Conselho de Cacique e Cacique da Aldeia Juerana
RG: 07873365 05
 18. Sinaldo Goivado Ferreira – Cacique da Aldeia Pataxó Nova Coroa
RG: 4.454.567
 19. Geraldo Alves do Espírito Santo – Cacique da Aldeia Pataxó Arueira
RG: 05133585 95
 20.   Antônio Lopes Santana – Cacique da Aldeia Pataxó Aldeia Velha
RG: 04542841 79
 21.   Renivaldo Braz Correia Filho – Cacique da Aldeia Pataxó Imbiriba
RG: 05645401-55
 22. Juvenal Costa Vales – Cacique da Aldeia Tupinambá
RG: 0338350390
 23. Maria do Carmo Quirino Santos – Cacique da Aldeia Tupinambá Patiburi
RG: 05758203 30
 24. Astério Ferreira Porto – Cacique da Aldeia Tupinambá
RG: 4.180.529
 25. José Ailton Souza Lapa – Liderança da Aldeia Mata Medonha
 26. Maicon Santos Soares – Diretor Geral do Instituto Guarda Indígena Pataxó
 27. Carlos Alves dos Santos – Secretário Municipal de Assuntos Indígenas de Santa Cruz Cabrália/BA 
RG: 07871453
 28. Antônio José Neves do Espírito Santo – Diretor de Relações Institucionais da SEMAI
 29. Antônio Manoel da Silva – Liderança Indígena
RG: 200.100.110.2553
30. Dioleno Braz Ferreira
 31. Ubiratan Ferreira dos Santos – Cacique da Aldeia Pataxó Pará
RG: 10117220 62
 32. Pedro Marcelino dos Santos Filho – Cacique da Aldeia Pataxó Xandó
 33. Marcos Antônio Andrade Silva – Liderança Indígena
RG: 12114107-14
 34. João Braz – Liderança Pataxó
RG: 10153248 27
 35. Moisés Ferreira de Oliveira – Cacique da Aldeia Pataxó Mata Medonha
36. Valmir Jesus de Souza – Vice Presidente da FINPAT
RG: 5687.628
 37. Ninete Bomfim Maranhão – Presidente da Associação dos Agricultores Indígenas Pataxó de Coroa Vermelha
RG: 06061499 45
38. Maria Bernarda Passos Barbosa – Presidente da Cooperativa Pataxó
RG: 80.543.704-20
 39. Edivane Silva Santos – Liderança Pataxó
 40. Damião Braz – Liderança Pataxó
RG: 06.734.111-09
 41. José Roberto de Jesus – Presidente da Cooperativa de Artesanato Pataxó
RG: 0763402866
 42. Edenildo Lopes Santana – Diretor da Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha
RG: 149.82689-35

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Campanha: Luta pela Terra e Vida Pataxó Hã-Hã-Hãe

Excelentíssimo Senhor Ministro,

O drama do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe ganhou repercussão nacional e internacional quando, na madrugada do dia 20 de abril de 1997, o índio Galdino Jesus dos Santos, que dormia num ponto de ônibus no centro de Brasília, teve seu corpo incendiado por cinco jovens da classe-média brasiliense. Galdino buscava em Brasília apoio para as reivindicações de recuperação do seu território tradicional, a Terra Indígena Caramuru – Catarina Paraguassú, no sul da Bahia. Galdino é um dos 30 Pataxó Hã-Hã-Hãe assassinados na luta pela retomada de suas terras.

Está próximo a continuidade do julgamento da ACO 312, ação na qual a Funai pede a nulidade dos títulos de propriedade de não-índios sobrepostos à Reserva Indígena, demarcada em 1938. A maioria desses títulos foi concedida pelo estado da Bahia durante a gestão de Antonio Carlos Magalhães, nos anos 70.

Por uma questão de Justiça solicito vossa especial atenção para a efetivação dos direitos do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, garantindo a integridade de suas terras tradicionais e pondo termo ao lamentável histórico de violências e massacres que este povo vem sofrendo desde os primeiros contatos com a sociedade não-indígena. 

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

PRIMAVERA CIDADÃ

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Desde o último 7 de setembro, em meio às comemorações do Dia da Independência e às manifestações do Grito dos Excluídos, nos vimos de certa forma surpreendidos com a Marcha contra a Corrupção. Em alguns lugares, os participantes superaram os expectadores dos desfiles e discursos oficiais, misturando-se e rivalizando com a mobilização em torno da 17ª edição do Grito.

É sabido e notório que, de algum tempo para cá, os movimentos e organizações sociais passaram por crises, momento de apatia, perplexidades, encruzilhadas... Mas o terreno, embora movediço, nunca deixou de ser fértil. As Semanas Sociais Brasileiras, o Grito dos Excluídos, a Campanha Jubileu Sul, as várias edições do Fórum Social Mundial, os diversos Plebiscitos, a Consulta e as Assembléias Populares, a Via Campesina, o Grito dos Excluídos, a Campanha da Ficha Limpa... Sempre representaram uma espécie de primavera no outono e inverno da luta popular.

Não seria a Marcha contra a Corrupção mais um desses botões que dão vida nova ao marasmo geral, anunciando o início da primavera? Primavera é tempo de amores, cores, sabores, flores... Rimas que abrem perspectivas inusitadas, horizontes cada vez mais amplos. Vale a pena debruçar-se mais de perto sobre essa mobilização.

Vinho novo

De início, algumas características da Marcha contra a Corrupção. O uso da Internet é notável. Como o subcomandante Marcos, no grupo indígena mexicano, também neste caso a informática representou um meio de chamamento à mobilização. Ou seja, a idéia de vias alternativas à prática da política corrupta pode conviver com a tecnologia de ponta. Alternativa não é sinônimo de artesanato. Convém não esquecer a ambiguidade da técnica. Ela tanto pode alienar como levar a um engajamento libertador. No curso da história, por exemplo, é fácil reconhecer um grande paradoxo da tecnologia mais avançada. De fato, ela se encontra hoje nos meios mais sofisticados de cura medicinal e, simultaneamente, nas máquinas de guerra mais letais ou nos instrumentos mais devastadores da natureza. Isto não quer dizer que a tecnologia é neutra. Mas seu uso pode ser orientado para pavimentar a estrada de uma civilização do "bem viver”.
Outra característica da Marcha contra a Corrupção está na quantidade de pessoas que aderem às manifestações. Fiquemos com um exemplo apenas, mas significativo por tratar-se da capital federal. De fato, em Brasília, foi menor o número dos que a partir das arquibancadas se contentaram com um patriotismo passivo, aplaudindo os festejos oficiais, do que as pessoas que resolveram descer ao gramado e jogar o jogo, mostrando um patriotismo combativo frente a corrupção endêmica. Num tempo de "vacas magras” em termos de mobilização, não é fácil levar às ruas e praças tantas centenas ou milhares de pessoas. Vem à tona, quase espontaneamente, o movimento e o entusiasmo dos "caras pintadas”, por ocasião do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Aliás, também aqui houve quem saísse de cara pintada.

Novo botão da primavera cidadã, a Marcha tem uma função dupla: por um lado, expõe à luz do sol aquilo que se passa nos corredores obscuros de uma prática política histórica e estruturalmente viciada. Revela os vícios e vírus de nossa "rex publica”. Por outro lado, levanta a bandeira de uma nova visão nacional quanto ao uso correto do erário público. Ela é sintoma de um olhar mais aberto e agudo sobre as ações políticas e, ao mesmo tempo, chama a uma tomada de consciência crescente. Numa palavra, tende a ser positivamente contagiosa. Vinho novo que borbulha e gera uma espuma que pode movimentar as águas paradas.

Perguntas sem resposta

Mas a Marcha contra a Corrupção exerce um papel fundamental. Papel que o sensacionalismo e a espetacularização midiática costumam deixar a meio caminho. Ela põe em pauta uma série de interrogações que, sistematicamente, ficam sem resposta. Ultimamente, temos assistindo a um crescente número de "operações” da Polícia Federal, da Promotoria ou do Ministério Públicos. Operações que se caracterizam por seus nomes exóticos e pelos milhões ou bilhões de reais desviados do orçamento da União, dos Estados ou dos Municípios.

Perguntas que não querem calar: para onde vão esses milhões e bilhões de reais? São bloqueados, confiscados e retornam aos cofres públicos? Ou permanecem ocultos nos mais diversos paraísos fiscais? E quanto aos crimes de formação de quadrilha, prevaricação, fraudes, desvio e apropriação indevida de recursos públicos, nepotismo, tráfico de influência... Quais as penas? Como e onde são cumpridas? Até que ponto a "faxina” da presidente Dilma Rousseff desce aos porões sujos e sórdidos das "maracutaias” tecidas por seus subordinados de primeiro, segundo e terceiro escalões?

Tudo indica que, ao contrário de punição, recebem prêmios. Tais criminosos, não raro, são coroados como uma nova promoção ou eleição. Voltam de cabeça erguida aos postos ocupados anteriormente. Silêncio total sobre o passado, nenhum constrangimento quanto ao presente, felizes perspectivas para o futuro. Enquanto a corrupção é premiada diante dos microfones, câmeras e holofotes, a ética põe o rabo entre as pernas e se encolhe com vergonha de fazer da política um meio de buscar o bem-estar social. A astúcia e a esperteza tomam o lugar da justiça e do direito. Os privilégios das velhas oligarquias permanecem intocáveis, enquanto os serviços públicos, particularmente à população de baixa renda, se notabilizam pela precariedade.

Resta ainda a pergunta sobre o destino dado à Lei da Ficha Limpa. Tem-se a impressão que a ficha suja se sobrepôs a todo o esforço dos cidadãos e que, cada político a seu modo, trata de limpar o próprio passado de corrupção e má administração. Com unhas e dentes afiados e com os advogados mais influentes, tratam de se manter na cadeira cativa do poder. O poder abre portas para ampliação da riqueza e esta, por sua vez, paga o preço de um mandato que se perpetua eleição após eleição.

Epidemia e vacina

Se é verdade que a Marcha contra a Corrupção amplia a aurora da primavera, o faz na medida em que brota de um inverno tenebroso. Inverno em que uma das maiores cargas tributários do mundo alimenta a corrupção endêmica. E esta, através de acordos e leis espúrias, retroalimenta a cobrança de impostos. Fecha-se assim um círculo de aço sobre os ombros da população. Vira e mexe, vem à pauta da Câmara de do Senado a recriação da famigerada CPMF. O pretexto é a saúde pública. Mas quem diz que esta estava às mil maravilhas nos tempos dessa extorsão pública disfarçada de imposto?

A fome da arrecadação parece insaciável. Medida pelo impostômetro, ela desnuda a fome das classes dominantes em manter privilégios que datam dos tempos da Colônia e do Império. A República e a Constituição, com o regime pretensamente democrático, não passam de um arcabouço legal para legitimar o espólio dos grandes sobre os pequenos. Pior é que entre os três poderes da União – Executivo, Legislativo e Judiciário – três "Cs” comandam as regras do cenário: cumplicidade, conluio e corporativismo... Os quais deságuam no rio turvo e turbulento de outro "C”, justamente a corrupção. Nessas águas navegam uma grande parte dos vereadores, deputados, senadores, ministros, juízes, representantes dos altos escalões, para não falar dos cargos majoritários.

O projeto de poder se sobrepõe ao projeto de nação. A promiscuidade é a moeda corrente. Salvo raras e louváveis exceções, cada político ou tecnocrata está disposto a encobrir os pecados do companheiro para cobrir os próprios. Como também está disposto e "fritar ou linchar” um comparsa para salvar a pele e o cargo. Quanto ao povo, vale enquanto massa de eleitores, não enquanto cidadãos de direitos. Daí a necessidade de manter e ampliar as políticas compensatórias (ou migalhas), especialmente às vésperas do pleito eleitoral e sob o pano de fundo da retórica e dos aplausos.

Há vacina contra essa epidemia? As iniciativas elencadas na introdução dizem que sim. O segredo está numa participação popular livre e ampliada. O que exige criação de instrumentos, mecanismos e canais de controle por parte da população e das instituições sociais. Controle das decisões políticas e do orçamento correspondente. Exemplos disso são os Conselhos de Saúde, Educação, Segurança, etc., quando escolhidos democraticamente e não manipulados pelo prefeito e seus apaniguados. Numa palavra, formas de uma democracia crescentemente participativa e mais direta, fortalecimento da sociedade civil.

Neste sentido, a Lei da Ficha Limpa não deixa de ser um antídoto ao vírus da corrupção. Mas o remédio pode ficar escondido no fundo das gavetas dos órgãos públicos ou, pior ainda, ser manipulado e distorcido, quando não banido das "farmácias”. Outro antídoto primaveril, sem dúvida, é a Marcha contra a Corrupção.


Pe. Alfredinho é assesor das Pastorais Sociais


Fonte: Adital

terça-feira, 20 de setembro de 2011

ÉTICA E POLÍTICA

Marilena Chauí


A Política foi uma coisa inventada pelos gregos. Isto não quer dizer que antes dos gregos, antes dos romanos não houvesse o exercício do poder, não houvesse governo, não houvesse autoridade. Claro que havia, nos grandes impérios que existiram antes e depois do mundo grego e do mundo romano. Mas qual era a marca do poder nestes grandes impérios antigos. A marca era a identidade entre o poder e a figura do governante. O governante era a encarnação do poder. Como pessoa encarnava nele a autoridade inteira, o poder inteiro. Ele era o autor da lei, o autor da recompensa, o autor do castigo, o autor da justiça. Ou seja, a vontade do governante, a vontade pessoal, individual dele era a única lei existente. O que nós podemos dizer não é que não houvesse o poder, a autoridade antes dos gregos e dos romanos. Pelo contrário, a imensidão dos grandes impérios antigos mostra que o poder estava lá. Qual é a diferença entretanto dos gregos e romanos face a estes grandes impérios, a este grande poder que havia na antigüidade? Antes dos gregos e dos romanos, a característica do poder era a identificação entre o ocupante do poder e o próprio poder. Ou seja, o governante era o próprio poder. Isto quer dizer uma coisa muito simples: a vontade do governante, a sua vontade privada, pessoal, sua vontade arbitrária, caprichosa, o que lhe desse na telha, era a lei. E era ela o critério para a guerra, para a paz, para a vida, para a morte, para a justiça, para a injustiça. Que fizeram os gregos e os romanos?

Eles inventaram a Política.

Ou seja, eles criaram a idéia de um espaço onde o poder existe através das leis. As leis não se identificam com a vontade dos governantes, elas exprimem uma vontade coletiva. Essa vontade coletiva se exprimia em público, nas assembléias, através da deliberação, da discussão e do voto. Ou seja, os gregos e os romanos submeteram o poder a um conjunto de instituições e a um conjunto de práticas que fizeram dele algo público, que concernia à totalidade dos cidadãos, e que era discutida, deliberada e votada por eles. E, portanto, eles criaram a esfera pública. Aquilo que nós chamamos de esfera pública. Ou seja, ninguém se identifica com o poder, a vontade de ninguém é lei, e portanto a autoridade é coletiva, pública, é aquilo que constitui o cidadão. Os gregos puderam e depois deles os romanos distinguir com muita clareza a autoridade política ou autoridade pública e a autoridade privada. Não por acaso a autoridade privada tem um nome muito especial. Em grego o chefe de família, que é aquele que detém a autoridade do espaço privado (e detém esta autoridade exclusivamente por sua vontade - a vontade dele é a lei), o chefe de família se chama “despotes”. E é porque a autoridade privada do espaço privada da família é a autoridade do “despotes” (a autoridade absoluta de vida e morte sobre todos os membros da família), é que a autoridade no espaço privado se chama despótica. E os gregos diziam: quando a autoridade for despótica, o espaço público foi tomado pelo espaço privado e a Política acabou. A condição da Política é que não haja despotismo.

Cristianismo: público x privado

O cristianismo vai criar um problema no campo da Política. Por que? Porque se para os antigos era no espaço público que a Ética melhor se realizava, no momento em que com o Cristianismo o espaço público é recusado em nome do espaço privado, do recinto, do coração e da consciência, o que acontece? O que acontece no momento em que surgem as autoridades cristãs? Ou seja, como é que vai haver um espaço público cristão? Já que a autoridade e a Ética são pensadas de maneira privada? Ou seja, Deus é o Pai, Deus é o Senhor, os cristãos são a sua família. Ele é o pastor de um só rebanho. Todas as metáforas e todas as palavras que indicam a autoridade no mundo cristão pertencem ao espaço privado: é o pai, é o senhor, é o pastor, o rebanho. Como é que isto vai se constituir como um espaço público? Não há como constituir como espaço público. Nós poderíamos ir enumerando uma série de características do poder medieval e portanto do poder cristão ou daquilo que agente pode chamar o poder teológico-político pelo qual o governante é uma figura privada. O espaço do poder é um espaço privado. E a Ética é a Ética da pessoa do governante. É ele que tem que ser educado para as virtudes. É ele que não pode ter vícios. É ele que tem que cumprir o dever porque das qualidades dele dependem as virtudes ou os vícios, a felicidade ou a corrupção do rei. Não existe portanto a esfera Política propriamente dita. Existe a esfera do poder mas não a esfera da Política.

Modernidade, Ética e Política

É esta esfera que a modernidade vai constituir. A partir da queda do antigo regime, da queda das monarquias por direito divino, da desmontagem do poder teológico-político e do ressurgimento da idéia de República, (primeiro a República oligárquica, depois a República representativa, depois a República Democrática), é que se reconfigura o campo público, da Política. Como o poder estava marcado pela Ética da esfera privada, como o poder estava marcado pela idéia de que o governante é que tinha que ser virtuoso, o que acontece com os pensadores que vão criar a nova idéia de Política, que vão dizer que existe sim a “res publica”(coisa pública, o espaço público)?. O que é que eles vão fazer?

Eles vão dizer que o espaço público, a “res publica”, o poder político, não pode ser regido pelos valores do espaço privado. Portanto pelos valores da Ética. Pelos valores da virtude. E eles vão separar, e esta grande separação é feita por Maquiavel, eles vão separar o público e o privado dizendo que o privado é campo da Ética, o público é o campo da Política. E a Política e a Ética não tem mais nada em comum. O que vai ser dito é que o campo da política não é regido pelas virtudes do governante.

O campo da Política é regido por uma lógica que é a lógica das relações de força. E para que o campo da Política não seja o campo da violência e da guerra é preciso lidar com esse campo de forças, e portanto com os conflitos, com as divisões que caracterizam a sociedade, com essas diferenças, de um modo tal que a Política não seja a guerra. Que a Política não seja a pura força, a pura violência, mas que ela tenha uma lógica das forças que é encarnada no poder político como um polo que simboliza para o todo da sociedade uma unidade que ela própria não tem. E que se realiza através das instituições e através da lei. E portanto o importante é a qualidade da lei e a qualidade das instituições, a qualidade do direito e da justiça, a qualidade das decisões. E não mais se a pessoa ou as pessoas que ocupam o campo político são ou não virtuosas. E a virtude e portanto com ela a Ética se tornam uma coisa própria da vida privada.

Sociedade Civil e Estado

A esfera da sociedade civil que é onde os indivíduos existem, é a esfera da vida privada. Ora, se a sociedade civil é a esfera da vida privada como é que o Estado se constitui como esfera pública. Se o Estado surge a partir da sociedade Civil para regulamentar a Sociedade Civil e comandá-la? Ou seja, a base do Estado são as relações privadas do mercado, baseadas, por exemplo, na lógica da competição.

Então o que se quer dizer é o seguinte: a sociedade moderna ao criar a Sociedade Civil como o mercado dos contratos doe trabalho, da produção de mercadorias e da acumulação do capital, e da propriedade privada, faz com que a esfera pública, que é uma esfera social, seja uma esfera privada. A esfera dos proprietários privados. E portanto nós não sabemos onde o Estado vai nascer para ser propriamente esfera pública.

Assim a separação que dizia: na esfera pública eu tenho a lógica Política e na esfera privada eu tenho a lógica Ética, se complica. Porque eu tenho aí uma esfera que é pública, que é a esfera social, na qual os elementos da vida privada estão presentes.

Nós podemos dizer que há dois motivos principais para essa enorme dificuldade que existe no nosso mundo contemporâneo para separar o público do privado e deixar a Ética em um dos lugares e a Política em outro.

Ética, Política, Liberdade, Igualdade

A primeira dificuldade é a seguinte: o homem, os seres humanos, são diferentes de todas as outras coisas que existem. Que diferença é esta? Todas as coisas que existem estão submetidas às leis necessárias da natureza. A natureza é um enorme sistema de causas e efeitos. Aquilo que a gente chama de Determinismo. Na natureza tudo tem causa, tudo produz um efeito, e a relação entre a causa e o efeito é uma relação necessária. Na natureza não existe acaso. Na natureza não existe jogo. Na natureza não existe Liberdade.

Ao contrário, a marca dos seres humanos é a Liberdade. Os seres humanos não pensam, não agem segundo relações de causa e efeito. Eles agem por escolha. Por deliberação. Por decisão. Eles agem por Liberdade. Eles agem escolhendo os Fins. Fins das ações que eles realizam. Eles agem escolhendo os Fins das ações que eles realizam, das práticas que eles tem, dos comportamentos que eles tem.

E portanto o reino humano ou a esfera humana é diferente do resto da natureza. Esta separação entre a natureza e os humanos se deu a partir de um critério que é fundamental na Ética: que é a liberdade, e a Finalidade. Se a Política vai operar com o critério da Liberdade, da Justiça, das Finalidades Humanas, então há na raiz da Política um valor que é ético. Este valor pode ser chamado de liberdade. Pode ser chamado de Justiça, ele pode ser chamado de responsabilidade. Mas este valor é ético. Então ao mesmo tempo em que há todo este trabalho para separar a Ética e a Política, há toda uma elaboração teórica de separação entre o homem e a natureza que coloca para a Ética e para a Política os mesmos fundamentos. Ou seja elas estão baseadas, as duas, nas mesmas coisas. Elas estão baseadas na Liberdade, na Finalidade, na Temporalidade Humana, no fato de o homem ser um Ser Cultural. Então, a Política vai ter que se dar no interior deste campo comum, que é o campo da cultura, o campo da história, o campo da civilização. Essa é a primeira dificuldade para separar Ética e Política já que elas possuem o mesmo fundamento.

Só que o aparecimento deste fundamento comum entre a Ética e a Política que é a Liberdade vai ao mesmo tempo introduzir um complicador. Que vai explicar afinal porque é tão difícil esta relação entre a Ética e a Política. E este complicador é um complicador para a Ética, para a Política, e para relação entre elas. Que complicador é este?

É o seguinte: ao afirmar que todos os homens, todos os seres humanos são livres é afirmado simultaneamente que por causa disto todos eles são iguais. A igualdade deles é a liberdade. Mas de fato, na prática, esta igualdade não existe muito. Pelo contrário, a sociedade é feita por uma divisão social entre os desiguais. E esta desigualdade, ferindo portanto a liberdade, ferindo aquilo que seria a igualdade, introduz para a Ética e para a Política o problema da Violência. Ou seja a desigualdade real faz com que falar da liberdade como o critério da vida Ética torna a Ética uma coisa irreal porque a igualdade pela qual ela poderia funcionar não existe e torna a Política incapaz também de realizar a liberdade.

(chamo de Violência todo ato pelo qual um ser humano é tratado desprovido de sua humanidade e é tratado como se ele fosse uma coisa). E é assim que nós podemos dizer que há pelo imenso três critérios pelos quais nós podemos dizer que a Ética e a Política se relacionam uma sendo subsídio para a realização da outra.

Primeiro critério: a relação entre meios e fins na Ética é uma relação na qual não há exercício da violência. Que é a violência? É tratar um ser humano como se ele fosse uma coisa. Como se ele fosse um objeto. Tratar um ser humano como um sujeito e não como um objeto é tratá-lo eticamente. Se a Política na esfera pública for capaz de tratar os fins políticos através de meios não violentos, não tratando os seres humanos como coisa nós temos uma Política Ética.

Segundo critério - embora a Ética se realize no campo da vida privada, o que a Ética busca nesta esfera que lhe é própria é a idéia de que nenhuma autoridade é legítima se ela for despótica, se ela for arbitrária, se ela se realizar como expressão da vontade individual, injustificada de alguém. Neste caso é a Política que vai ajudar a Ética na medida em que o próprio da esfera pública é afastar a autoridade despótica, isto é, aquela autoridade que se exerce como uma vontade pessoal, individual, arbitrária, acima de todas as outras. Assim agora a relação vem da Política para a Ética em que a Ética auxilia na luta contra as formas arbitrárias de autoridade no interior da vida privada. Isto significa, por exemplo, que a posição do pai, da mãe, do avô, da avó, do patrão, do chefe, não é tão simples. Não basta a vontade deles para que a autoridade deles seja eticamente legítima. A Política nos ajuda portanto a melhorar a própria Ética.

Terceiro critério: é o critério que pode valer para a Ética e para a Política que é a redefinição da idéia de liberdade. Em vez de pensarmos a liberdade como o direito de escolha vale a pena pensar a liberdade como o poder de criar o possível. Ou seja, a liberdade é esta capacidade dos seres humanos de fazer existir o que não existia. De inventar o possível. De inventar o novo. E se a liberdade for pensada desta maneira, a relação entre a Ética e a Política pode se dar como criação histórica na esfera privada e na esfera pública. Estou convencida de que há uma única forma da Política compatível com a Ética e uma única modalidade da Ética compatível com a Política. Essa forma Política é a democracia. E esta forma Ética é a liberdade através dos direitos. Então como a democracia é o campo da criação dos direitos e como a Ética é a afirmação de direitos através do direito fundamental que é o direito à vida e à liberdade, a compatibilidade entre a Ética e a Política só pode ocorrer quando o campo da Política permite o tratamento dos conflitos e quando o campo da Ética permite a divulgação dos seus princípios.

Então eu diria que é a possibilidade de dar à Ética um conteúdo público e de dar à Política um conteúdo moral que ocorre na democracia. Acho que não foi por acaso, indo lá no meu ponto de partida, não foi por acaso que os inventores da Política, os gregos, considerassem que era só na Política que a Ética se realizava e por Política eles entendiam a democracia como igualdade perante a lei, (a isonomia). E o direito a expor, a discutir e votar a opinião em púbico que é a isegoria.

Então se nós considerarmos que o campo da Ética é o campo da liberdade e o campo da Política é também o campo da liberdade, só uma forma Política na qual esse princípio possa se realizar é que torna viável uma relação entre a Ética e a Política. O que significa que o ideal ético da visibilidade só pode se realizar na prática Política da democracia, e vice-versa. Evidentemente isto seria um ponto de partida. Isto não é uma conclusão. Pelo contrário se assim for nós precisaremos começar tudo de novo. Pois nós temos que recomeçar a discutir a desigualdade, a violência, a mentira, a corrupção, a privatização e a oficialização estatal de nossas vidas.