terça-feira, 20 de setembro de 2011

ÉTICA E POLÍTICA

Marilena Chauí


A Política foi uma coisa inventada pelos gregos. Isto não quer dizer que antes dos gregos, antes dos romanos não houvesse o exercício do poder, não houvesse governo, não houvesse autoridade. Claro que havia, nos grandes impérios que existiram antes e depois do mundo grego e do mundo romano. Mas qual era a marca do poder nestes grandes impérios antigos. A marca era a identidade entre o poder e a figura do governante. O governante era a encarnação do poder. Como pessoa encarnava nele a autoridade inteira, o poder inteiro. Ele era o autor da lei, o autor da recompensa, o autor do castigo, o autor da justiça. Ou seja, a vontade do governante, a vontade pessoal, individual dele era a única lei existente. O que nós podemos dizer não é que não houvesse o poder, a autoridade antes dos gregos e dos romanos. Pelo contrário, a imensidão dos grandes impérios antigos mostra que o poder estava lá. Qual é a diferença entretanto dos gregos e romanos face a estes grandes impérios, a este grande poder que havia na antigüidade? Antes dos gregos e dos romanos, a característica do poder era a identificação entre o ocupante do poder e o próprio poder. Ou seja, o governante era o próprio poder. Isto quer dizer uma coisa muito simples: a vontade do governante, a sua vontade privada, pessoal, sua vontade arbitrária, caprichosa, o que lhe desse na telha, era a lei. E era ela o critério para a guerra, para a paz, para a vida, para a morte, para a justiça, para a injustiça. Que fizeram os gregos e os romanos?

Eles inventaram a Política.

Ou seja, eles criaram a idéia de um espaço onde o poder existe através das leis. As leis não se identificam com a vontade dos governantes, elas exprimem uma vontade coletiva. Essa vontade coletiva se exprimia em público, nas assembléias, através da deliberação, da discussão e do voto. Ou seja, os gregos e os romanos submeteram o poder a um conjunto de instituições e a um conjunto de práticas que fizeram dele algo público, que concernia à totalidade dos cidadãos, e que era discutida, deliberada e votada por eles. E, portanto, eles criaram a esfera pública. Aquilo que nós chamamos de esfera pública. Ou seja, ninguém se identifica com o poder, a vontade de ninguém é lei, e portanto a autoridade é coletiva, pública, é aquilo que constitui o cidadão. Os gregos puderam e depois deles os romanos distinguir com muita clareza a autoridade política ou autoridade pública e a autoridade privada. Não por acaso a autoridade privada tem um nome muito especial. Em grego o chefe de família, que é aquele que detém a autoridade do espaço privado (e detém esta autoridade exclusivamente por sua vontade - a vontade dele é a lei), o chefe de família se chama “despotes”. E é porque a autoridade privada do espaço privada da família é a autoridade do “despotes” (a autoridade absoluta de vida e morte sobre todos os membros da família), é que a autoridade no espaço privado se chama despótica. E os gregos diziam: quando a autoridade for despótica, o espaço público foi tomado pelo espaço privado e a Política acabou. A condição da Política é que não haja despotismo.

Cristianismo: público x privado

O cristianismo vai criar um problema no campo da Política. Por que? Porque se para os antigos era no espaço público que a Ética melhor se realizava, no momento em que com o Cristianismo o espaço público é recusado em nome do espaço privado, do recinto, do coração e da consciência, o que acontece? O que acontece no momento em que surgem as autoridades cristãs? Ou seja, como é que vai haver um espaço público cristão? Já que a autoridade e a Ética são pensadas de maneira privada? Ou seja, Deus é o Pai, Deus é o Senhor, os cristãos são a sua família. Ele é o pastor de um só rebanho. Todas as metáforas e todas as palavras que indicam a autoridade no mundo cristão pertencem ao espaço privado: é o pai, é o senhor, é o pastor, o rebanho. Como é que isto vai se constituir como um espaço público? Não há como constituir como espaço público. Nós poderíamos ir enumerando uma série de características do poder medieval e portanto do poder cristão ou daquilo que agente pode chamar o poder teológico-político pelo qual o governante é uma figura privada. O espaço do poder é um espaço privado. E a Ética é a Ética da pessoa do governante. É ele que tem que ser educado para as virtudes. É ele que não pode ter vícios. É ele que tem que cumprir o dever porque das qualidades dele dependem as virtudes ou os vícios, a felicidade ou a corrupção do rei. Não existe portanto a esfera Política propriamente dita. Existe a esfera do poder mas não a esfera da Política.

Modernidade, Ética e Política

É esta esfera que a modernidade vai constituir. A partir da queda do antigo regime, da queda das monarquias por direito divino, da desmontagem do poder teológico-político e do ressurgimento da idéia de República, (primeiro a República oligárquica, depois a República representativa, depois a República Democrática), é que se reconfigura o campo público, da Política. Como o poder estava marcado pela Ética da esfera privada, como o poder estava marcado pela idéia de que o governante é que tinha que ser virtuoso, o que acontece com os pensadores que vão criar a nova idéia de Política, que vão dizer que existe sim a “res publica”(coisa pública, o espaço público)?. O que é que eles vão fazer?

Eles vão dizer que o espaço público, a “res publica”, o poder político, não pode ser regido pelos valores do espaço privado. Portanto pelos valores da Ética. Pelos valores da virtude. E eles vão separar, e esta grande separação é feita por Maquiavel, eles vão separar o público e o privado dizendo que o privado é campo da Ética, o público é o campo da Política. E a Política e a Ética não tem mais nada em comum. O que vai ser dito é que o campo da política não é regido pelas virtudes do governante.

O campo da Política é regido por uma lógica que é a lógica das relações de força. E para que o campo da Política não seja o campo da violência e da guerra é preciso lidar com esse campo de forças, e portanto com os conflitos, com as divisões que caracterizam a sociedade, com essas diferenças, de um modo tal que a Política não seja a guerra. Que a Política não seja a pura força, a pura violência, mas que ela tenha uma lógica das forças que é encarnada no poder político como um polo que simboliza para o todo da sociedade uma unidade que ela própria não tem. E que se realiza através das instituições e através da lei. E portanto o importante é a qualidade da lei e a qualidade das instituições, a qualidade do direito e da justiça, a qualidade das decisões. E não mais se a pessoa ou as pessoas que ocupam o campo político são ou não virtuosas. E a virtude e portanto com ela a Ética se tornam uma coisa própria da vida privada.

Sociedade Civil e Estado

A esfera da sociedade civil que é onde os indivíduos existem, é a esfera da vida privada. Ora, se a sociedade civil é a esfera da vida privada como é que o Estado se constitui como esfera pública. Se o Estado surge a partir da sociedade Civil para regulamentar a Sociedade Civil e comandá-la? Ou seja, a base do Estado são as relações privadas do mercado, baseadas, por exemplo, na lógica da competição.

Então o que se quer dizer é o seguinte: a sociedade moderna ao criar a Sociedade Civil como o mercado dos contratos doe trabalho, da produção de mercadorias e da acumulação do capital, e da propriedade privada, faz com que a esfera pública, que é uma esfera social, seja uma esfera privada. A esfera dos proprietários privados. E portanto nós não sabemos onde o Estado vai nascer para ser propriamente esfera pública.

Assim a separação que dizia: na esfera pública eu tenho a lógica Política e na esfera privada eu tenho a lógica Ética, se complica. Porque eu tenho aí uma esfera que é pública, que é a esfera social, na qual os elementos da vida privada estão presentes.

Nós podemos dizer que há dois motivos principais para essa enorme dificuldade que existe no nosso mundo contemporâneo para separar o público do privado e deixar a Ética em um dos lugares e a Política em outro.

Ética, Política, Liberdade, Igualdade

A primeira dificuldade é a seguinte: o homem, os seres humanos, são diferentes de todas as outras coisas que existem. Que diferença é esta? Todas as coisas que existem estão submetidas às leis necessárias da natureza. A natureza é um enorme sistema de causas e efeitos. Aquilo que a gente chama de Determinismo. Na natureza tudo tem causa, tudo produz um efeito, e a relação entre a causa e o efeito é uma relação necessária. Na natureza não existe acaso. Na natureza não existe jogo. Na natureza não existe Liberdade.

Ao contrário, a marca dos seres humanos é a Liberdade. Os seres humanos não pensam, não agem segundo relações de causa e efeito. Eles agem por escolha. Por deliberação. Por decisão. Eles agem por Liberdade. Eles agem escolhendo os Fins. Fins das ações que eles realizam. Eles agem escolhendo os Fins das ações que eles realizam, das práticas que eles tem, dos comportamentos que eles tem.

E portanto o reino humano ou a esfera humana é diferente do resto da natureza. Esta separação entre a natureza e os humanos se deu a partir de um critério que é fundamental na Ética: que é a liberdade, e a Finalidade. Se a Política vai operar com o critério da Liberdade, da Justiça, das Finalidades Humanas, então há na raiz da Política um valor que é ético. Este valor pode ser chamado de liberdade. Pode ser chamado de Justiça, ele pode ser chamado de responsabilidade. Mas este valor é ético. Então ao mesmo tempo em que há todo este trabalho para separar a Ética e a Política, há toda uma elaboração teórica de separação entre o homem e a natureza que coloca para a Ética e para a Política os mesmos fundamentos. Ou seja elas estão baseadas, as duas, nas mesmas coisas. Elas estão baseadas na Liberdade, na Finalidade, na Temporalidade Humana, no fato de o homem ser um Ser Cultural. Então, a Política vai ter que se dar no interior deste campo comum, que é o campo da cultura, o campo da história, o campo da civilização. Essa é a primeira dificuldade para separar Ética e Política já que elas possuem o mesmo fundamento.

Só que o aparecimento deste fundamento comum entre a Ética e a Política que é a Liberdade vai ao mesmo tempo introduzir um complicador. Que vai explicar afinal porque é tão difícil esta relação entre a Ética e a Política. E este complicador é um complicador para a Ética, para a Política, e para relação entre elas. Que complicador é este?

É o seguinte: ao afirmar que todos os homens, todos os seres humanos são livres é afirmado simultaneamente que por causa disto todos eles são iguais. A igualdade deles é a liberdade. Mas de fato, na prática, esta igualdade não existe muito. Pelo contrário, a sociedade é feita por uma divisão social entre os desiguais. E esta desigualdade, ferindo portanto a liberdade, ferindo aquilo que seria a igualdade, introduz para a Ética e para a Política o problema da Violência. Ou seja a desigualdade real faz com que falar da liberdade como o critério da vida Ética torna a Ética uma coisa irreal porque a igualdade pela qual ela poderia funcionar não existe e torna a Política incapaz também de realizar a liberdade.

(chamo de Violência todo ato pelo qual um ser humano é tratado desprovido de sua humanidade e é tratado como se ele fosse uma coisa). E é assim que nós podemos dizer que há pelo imenso três critérios pelos quais nós podemos dizer que a Ética e a Política se relacionam uma sendo subsídio para a realização da outra.

Primeiro critério: a relação entre meios e fins na Ética é uma relação na qual não há exercício da violência. Que é a violência? É tratar um ser humano como se ele fosse uma coisa. Como se ele fosse um objeto. Tratar um ser humano como um sujeito e não como um objeto é tratá-lo eticamente. Se a Política na esfera pública for capaz de tratar os fins políticos através de meios não violentos, não tratando os seres humanos como coisa nós temos uma Política Ética.

Segundo critério - embora a Ética se realize no campo da vida privada, o que a Ética busca nesta esfera que lhe é própria é a idéia de que nenhuma autoridade é legítima se ela for despótica, se ela for arbitrária, se ela se realizar como expressão da vontade individual, injustificada de alguém. Neste caso é a Política que vai ajudar a Ética na medida em que o próprio da esfera pública é afastar a autoridade despótica, isto é, aquela autoridade que se exerce como uma vontade pessoal, individual, arbitrária, acima de todas as outras. Assim agora a relação vem da Política para a Ética em que a Ética auxilia na luta contra as formas arbitrárias de autoridade no interior da vida privada. Isto significa, por exemplo, que a posição do pai, da mãe, do avô, da avó, do patrão, do chefe, não é tão simples. Não basta a vontade deles para que a autoridade deles seja eticamente legítima. A Política nos ajuda portanto a melhorar a própria Ética.

Terceiro critério: é o critério que pode valer para a Ética e para a Política que é a redefinição da idéia de liberdade. Em vez de pensarmos a liberdade como o direito de escolha vale a pena pensar a liberdade como o poder de criar o possível. Ou seja, a liberdade é esta capacidade dos seres humanos de fazer existir o que não existia. De inventar o possível. De inventar o novo. E se a liberdade for pensada desta maneira, a relação entre a Ética e a Política pode se dar como criação histórica na esfera privada e na esfera pública. Estou convencida de que há uma única forma da Política compatível com a Ética e uma única modalidade da Ética compatível com a Política. Essa forma Política é a democracia. E esta forma Ética é a liberdade através dos direitos. Então como a democracia é o campo da criação dos direitos e como a Ética é a afirmação de direitos através do direito fundamental que é o direito à vida e à liberdade, a compatibilidade entre a Ética e a Política só pode ocorrer quando o campo da Política permite o tratamento dos conflitos e quando o campo da Ética permite a divulgação dos seus princípios.

Então eu diria que é a possibilidade de dar à Ética um conteúdo público e de dar à Política um conteúdo moral que ocorre na democracia. Acho que não foi por acaso, indo lá no meu ponto de partida, não foi por acaso que os inventores da Política, os gregos, considerassem que era só na Política que a Ética se realizava e por Política eles entendiam a democracia como igualdade perante a lei, (a isonomia). E o direito a expor, a discutir e votar a opinião em púbico que é a isegoria.

Então se nós considerarmos que o campo da Ética é o campo da liberdade e o campo da Política é também o campo da liberdade, só uma forma Política na qual esse princípio possa se realizar é que torna viável uma relação entre a Ética e a Política. O que significa que o ideal ético da visibilidade só pode se realizar na prática Política da democracia, e vice-versa. Evidentemente isto seria um ponto de partida. Isto não é uma conclusão. Pelo contrário se assim for nós precisaremos começar tudo de novo. Pois nós temos que recomeçar a discutir a desigualdade, a violência, a mentira, a corrupção, a privatização e a oficialização estatal de nossas vidas.

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