sábado, 28 de janeiro de 2012

Operação policial na Cracolândia: fracasso (e negócios) à vista

Gabriel Brito, da Redação  (1)



Subjugada pelo Reich tucano há duas décadas, desta vez São Paulo não tardou nada para começar o novo ano sob o signo da barbárie e da desumanidade, invariavelmente voltada contra os pobres e excluídos, isto é, os “vencidos” pelo modelo de sociedade individualista e de mercado que assola nossos dias. No momento, a nova investida contra a cidadania e os mais elementares direitos humanos se dá na famigerada Cracolândia.

Localizada no centro da cidade, na região das históricas estações da Luz e Julio Prestes, onde hoje também se encontram a Pinacoteca do Estado e a Sala São Paulo, o local é a mais nova e almejada menina dos olhos do setor imobiliário, verdadeiro mandante da Paulicéia e seus respectivos políticos.

Dessa forma, com vistas a dar vazão ao contestado projeto do prefeito Gilberto Kassab de revitalização da área, batizado de ‘Nova Luz’ e contestado pelos próprios moradores e comerciantes da área, o governo e a prefeitura de São Paulo deram início à operação “Sufoco”, sugestiva por si só, com vistas a combater o ostensivo tráfico e uso do crack, a droga mais consumida pelos miseráveis e moradores de rua, cujos efeitos são reconhecidamente os mais nefastos dentre todos os itens do varejo das drogas.

Aplaudida de pé pela mídia e seu público alienado, a operação conta apenas com a presença da Polícia Militar, que desde o início da última semana passou a contar com seu braço de elite, a Rota, no combate e dispersão dos usuários. No entanto, não há mais nada planejado seriamente no sentido de realmente extirpar essa chaga de nosso cotidiano.

Com o decorrer dos trabalhos, desde o início marcados pela violência e falta de bom senso dos PMs, descobriu-se que na verdade foi a corporação militar quem decidiu e deflagrou sozinha todo o plano. A idéia original previa, antes de tudo, a construção de um centro de assistência social, há cerca de um quilômetro da Cracolândia, habilitado a atender 1200 pessoas por dia. Depois, por volta de março, o braço militar do Estado seria acionado.

Dessa forma, o Ministério Público Estadual logo entrou em cena e qualificou como “desastrosa” a operação, de acordo com as palavras de alguns de seus promotores. Como não poderia deixar de ser, o secretário de segurança, Antonio Ferreira Pinto, rebateu a crítica e emendou com a acusação de que os promotores fazem “pirotecnia”, seguindo a lógica vigente de intolerância a todas as contestações sobre a truculência e ineficácia da PM, tal como se vê, por exemplo, na USP nos últimos meses.

"São Paulo é uma das (cidades) mais antigas no uso de crack, nossa Cracolândia é ‘original’, se comparada às outras que vêm surgindo. Na verdade São Paulo deveria estar pensando em estratégias e políticas públicas para replicar o resto do país, e não é o que vem acontecendo", afirma Bruno Ramos Gomes, do coletivo ‘Centro É De Lei’, que tem se debruçado sobre a questão do crack nos últimos tempos, em entrevista ao especial Nova Luz produzido pelo jornal Brasil de Fato.

Tal declaração serve para esclarecer a realidade nua e crua, de que a cidade negligencia completamente o tratamento humanizado de seus dependentes químicos. Quem caminha pela região, logo vê a exorbitante quantidade de policiais, a cavalo, moto, bicicleta, agrupados ao lado de viaturas, de modo a justificar inteiramente o nome da operação.

E, de fato, o plano tem surtido efeito, dentro de seus limitados propósitos. É notório que o número de viciados que perambulavam pela região diminuiu drasticamente, assim como o tráfico e consumo. No momento, os aturdidos dependentes circulam em pequenos e apressados grupos pelas calçadas da cidade, em caminhadas sem rumo que os levam aos mais diversos destinos, o que agora passa a incomodar a população de outras localidades.

Assim, a polícia começou a expandir levemente o acompanhamento dessas pessoas que só são lembradas pelo Estado para serem repelidas. Nas principais avenidas que cercam a região e conduzem a outros pontos da cidade, verifica-se claramente a presença de um maior contingente de policiais e viaturas circulando vagarosamente, de olho no movimento de “suspeitos” e nas direções que tomam. O objetivo, visível, é evitar a entrada em bairros mais abastados e a subseqüente histeria de seus moradores.

Com isso, e com um debate sempre empobrecido pela grande mídia, que só trata de espetacularizar a operação, raramente oferecendo uma visão mais humana dos dependentes, pouco se pensa sobre o que realmente fazer de efetivo para uma real solução do problema – vide a rede Record, cujo helicóptero se transformou no despertador oficial dos moradores do centro.

No mais, discute-se se a internação compulsória é uma alternativa válida, o que para muitos chega a ser inconstitucional, além de ineficaz, ou se meros albergues podem dar conta de ao menos tirá-los da visão dos transeuntes.

“Nos dias atuais, observa-se a implementação de diversos procedimentos descolados das diretrizes básicas de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, que têm sido construídas e indiscutivelmente progredido, a partir dos trabalhos teórico-práticos desenvolvidos ao longo dos anos”, escreveu Fabiana Lustosa, psicóloga, no Portal Pró-Menino.

Sob este ponto de vista, a reabilitação psicossocial e a reinserção do usuário apostam na potencialidade do território comunitário, valorizando-o no processo de saúde-doença em relação ao consumo de substâncias. Assim, tornou-se imperativo o incremento de ações extra-hospitalares, investindo nos conceitos de território e de rede para tecer o cuidado integral. Esta modalidade de cuidado vem de encontro ao que predomina no imaginário social, que tende a mitificar a internação, considerando-a como a única medida resolutiva no que tange aos usuários de drogas. Desta maneira, a hospitalização é utilizada de forma indiscriminada sem que haja uma avaliação adequada do caso”, completa Fabiana.


Tal idéia vai de encontro com as novas formas de tratamento de pessoas que sofrem de transtornos mentais, fora dos tradicionais manicômios, vistos como antros de morte e degradação. No entanto, em ambos os casos o governo tucano também mantém sua coerência, ignorando essas novas formas de tratamento e abusando das velhas práticas de proporcionar ainda mais “dor e sofrimento”, como bem declararam seus porta-vozes no início da operação.


Nesse sentido, vale lembrar o escândalo que causou a revelação de centenas de mortes nos manicômios do estado no ano passado, uma tendência que ainda não cessa, e pode ser explicada novamente pelos velhos interesses privados, neste caso dos donos de manicômios e hospitais psiquiátricos, em geral ligados politicamente ao tucanato.

Em ambos os casos, deixa-se de lado uma tentativa de verdadeiramente ressocializar essas pessoas, que continuam conhecendo apenas o braço repressor e desumano do Estado. Ao mesmo tempo em que os dependentes do crack vivem desterrados, sem lugar pra sequer dormir, salta aos olhos a enorme quantidade de prédios abandonados nas ruas da mesmíssima região.

Assim, fica mais que evidente os escusos e mesquinhos interesses políticos que movem Alckmin, Kassab e seus colegas. Pois se não, por que simplesmente não se começa a alojar os pobres usuários de crack em moradias que poderiam ser desapropriadas pelo Estado a qualquer momento com fins sociais? Por tabela, ocupando de forma digna o coração da cidade, tais pessoas ainda teriam acesso fácil aos centros de assistência médica e social e certamente mais condições de se reinserir rapidamente, na vida e no mercado de trabalho. Num centro que tem cerca de 200 mil apartamentos ociosos, por que é tão difícil promover essa fagulha de justiça?

Obviamente pelo fato de tais governos, especialmente os tucanos de São Paulo, estarem completamente seqüestrados pela especulação imobiliária, que os financia politicamente e em troca recebe sinal verde para fazer o que bem entender, não só no centro, mas também em qualquer área da cidade. Basta ver a absurda quantidade de prédios sendo levantados incessantemente aos quatro cantos, sem relação alguma com a correção de nosso estrondoso déficit habitacional.

"Se o projeto da Nova Luz for pra frente, vão desapropriar, demolir e os usuários vão continuar em situação de rua, fumando pedra, vendendo pedra e se prostituindo. Essa população vai acabar migrando para outras regiões, e não sei se vai continuar esse esforço tão grande da prefeitura em fazer coisas com eles, porque aí não vai estar mais influenciando o projeto urbanístico", adverte Bruno Ramos Gomes.

Além disso, a precipitação da operação tem tudo a ver com o fato de que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e o próprio governo federal, desde a era Lula, vinham tramando soluções de combate ao crack em São Paulo – e também nacionalmente. Basta ver que o Planalto pretende investir 4 bilhões de reais nessa questão até 2014. Antevendo a derrota política, a dupla demotucana resolveu apressar os planos e iniciar do jeito que fosse a “limpeza” da Nova Luz.

Não se trata de louvar o plano federal, que segundo críticos mais especializados tampouco contempla as melhores alternativas de tratamento e ressocialização de usuários, baseando-se em internações, até forçadas, para manter os dependentes longe das drogas a todo custo, sem, no entanto, oferecer garantias de longo prazo de que conseguirão se afastar desse vício destruidor e retomar uma vida razoavelmente normalizada.

De acordo com estudos dos próprios centros sociais que trabalham com dependentes, cerca de 60% dos 1700 viciados pesquisados retomaram o vício após receberem tratamento. Diante da conhecida força da droga, fica notório que carecemos de uma visão que vá além do mero tratamento médico e permita uma verdadeira recuperação das vítimas do crack, acompanhada de reais perspectivas de uma vida digna.

Por isso é tão chocante ver policiais preparados para os mais duros combates, de exuberante força física, se digladiando com famélicos e estropiados usuários de crack pelas madrugadas paulistanas, “expurgando o mal” na porrada. Como diz uma pichação da avenida São João, “não adianta maquiar, a Cracolândia anda”.

Diante dessa tragicomédia, a própria polícia deu um passo atrás nesta segunda semana de operação: agora, a ordem é relaxar a dispersão dos usuários, cujo trânsito já notou ser incontrolável, além da esterilidade em fazê-los apenas migrar para novos locais, uma vez que não se desmaterializarão com balas de borracha e cacetadas nas costas.

A dura verdade é que nada relacionado à tragédia do crack e da vida nas ruas poderá se modificar enquanto gestores como Alckimin e Kassab estiverem à frente da cidade, atrelados até a medula aos interesses especulativos da terra e combatentes ferozes de toda e qualquer humanização das relações sociais numa cidade tão carente de saúde, paz, harmonia, esperança e outros estados de espírito que sempre fazem parte de nossos votos de cada novo ano.


(1) - Gabriel Brito é jornalista.









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